quarta-feira, 31 de março de 2010

A memória das coisas boas é um frasco de perfume bom, aberto e teimoso.

terça-feira, 30 de março de 2010

A memória
dá-me tudo
o que tem,
mas não me deixa
apanhar flores de cheiro
na pele.

domingo, 28 de março de 2010

Hoje cheira-me a céu fresco e sinto que a vida já palpita na barriga da terra toda.

Os bichos recebem uma ordem para nascer. É um murmúrio que percorre os torrões, as ribeiras os ninhos. E cada um desentorpece à medida do murmúrio que traz por dentro. De um útero, de um ovo, de um casulo.

A primeira borboleta que cores terá?

terça-feira, 23 de março de 2010

Ler e contar

Nas Alcarias, freguesia da Conceição, concelho de Ourique, o tempo é quieto e sereno. Toda a aldeia é uma almofada de silêncios bons onde o horizonte vem poisar a cabeça para descansar dos ruídos do mundo. As barras das casas são molduras que guardam a memória da cal. As chaminés, de arquitectura senhorial, são obras de arte que levantaram os homens do chão e do pó das coisas banais e os aproximaram mais do firmamento. Nas Alcarias moram vinte e uma pessoas. Nas Alcarias quase todas as pessoas têm rugas que a vida lhes lavrou no rosto e nas mãos. Os mais novos saíram, foram à procura de um sentido moderno para a vida, foram ao encontro de ambições, fugiram ao destino bucólico, mas cruel das planícies e das ruínas.Os mais velhos ficaram porque a idade e a alma os agarrou à terra. Ou, se calhar, dizendo melhor, foram eles que se quiseram agarrar àquela paz. E por escolha, ou por destino, ali estão sentados à soleira das portas, moendo mágoas, enchendo a boca de ar fresco, telefonando aos filhos e aos netos, vivendo um dia de cada vez com um brilho de geada nos olhos.Mas há os que chegaram, os que não são das Alcarias, nem sequer do concelho, nem sequer do Alentejo, são os que voltaram costas à falta de espaço, ao desassossego, ao tempo inquieto e frenético.Descobriram que as manhãs nascem felizes do ventre dos restolhos e que os grilos cantam para a noite adormecer.A professora Ana Vaz veio à procura de espaço dentro de si. Quis redefinir a sua existência. Achar o vagar. Veio à procura de pardais que lhe explicassem os segredos das planuras. Deu aulas em Aljustrel e depois reformou-se. E quis continuar a viver onde os dias são maiores porque os relógios se inebriam do cheiro da hortelã da ribeira e dos poejos. A professora Ana, acabadas as aulas de Português e Francês, sentiu necessidade de retribuir a calma que aquela gente boa lhe tinha dado e então decidiu abrir uma biblioteca. Para Ler e Contar. É uma casa térrea de barras azuis imitando o céu. Quando entramos pressentimos memórias penduradas nas paredes orgulhosas de taipa, descansando no chão pisado pelos pés imensos do tempo. São duas divisões pequenas, aconchegadas, brancas, com estantes azuis prenhes de livros. Os livros são reservatórios de saber, de romances, de poemas, onde os homens e mulheres e crianças vêm beber quando querem perceber a vida. Os livros vão chegando como beijos de papel enviados pelos amigos. Façam chegar mais. Os endereços são amfortevaz@hotmail.com ou lerecontar2004@hotmail.comQuem não sabe ler, ouve contar.
São vinte e uma pessoas. Como se fossem cem, como se fossem mil, como se fosse a humanidade toda.
Texto publicado no Jornal CorreioAlentejo de 19/03/2010

sexta-feira, 19 de março de 2010

mar

Num penhasco, uma gaivota põe ovos.
É de dentro deles, disseram-me, que se solta o vento.

quarta-feira, 17 de março de 2010

livros

Os livros são reservatórios de saber, de romances, de poemas, onde os homens, mulheres e crianças vão beber quando querem perceber a vida.

domingo, 14 de março de 2010

Píndaro:
" Minha alma não exijas a imortalidade, mas esgota o campo do possível".

quarta-feira, 10 de março de 2010

A liberdade sabe a caramelo

Aprendeu a gostar de ser livre na idade em que aprendeu a gostar de caramelos. Ainda bem pequeno. E nem à pancada lhe conseguiram tirar aquele sabor da boca. Podiam tirar-lhe os caramelos, fechá-los numa gaveta, comê-los todos. Mas à sua liberdade é que já não podiam fazer nada. A liberdade é uma paixão eterna. A liberdade não se agarra só aos dentes como os caramelos. A liberdade agarra-se a tudo em nós. Entranha-se. Encharca-nos de inquietação e sonhos. Mete-se no sangue, nos pulmões, no mais ínfimo das células, voa no oxigénio, faz ninho no coração e procria. Um a um, pequenos actos de liberdade e respeito saem-nos do peito e da boca, dia após dia, no relacionamento com a vida e com os outros. Sem nada impor, arredar ou ultrapassar. Opinando, escolhendo as palavras melhores que os dicionários têm, voando sobre a lama, evitando as armadilhas, contornando os obstáculos, não dizendo cobras nem lagartos nem destilando veneno. Sem preconceitos, sem tácticas. Uma vez desembrulhada e saboreada, a liberdade aloja-se no cérebro e muda-nos. Põe-nos de pé. Mesmo que sejamos franzinos, desengraçados, demasiado comuns, a liberdade dá-nos as palavras certas para procuramos o nosso caminho. Ser livre é ter uma bússola nos olhos, mantimentos para a viagem toda, é ver, ouvir e ler, é ter inquietação, é dobrar horizontes, é não ter medo. Que teimoso é o moço, queixavam-se a mãe, a avó e os tios. Tem a mania que é esperto, diziam os maiores, ao mesmo tempo que lhe davam umas chapadas por causa de mais um não quando era suposto dizer sim. É demasiado distraído, comentava o professor sempre que ele não respeitava o tema da redacção. Vais dar muitos tombos na vida, exclamavam os amigos sempre que ele não aceitava o estado parado e confortável das coisas. Sempre detestou gaiolas de pássaros, aquários, trelas de cães, jardins zoológicos. Aprendeu a ouvir os outros, aprendeu a discordar dos outros, a respeitar a diferença dos outros, a aceitar que os outros podem não gostar dele, podem até detestá-lo, odiá-lo, mas que isso é um direito que lhes assiste e por isso não lhes quer mal. Compreendeu que o mundo é feito de dialéctica, de oposição, de contraste. Por ser um homem livre, percebeu que deve ser magnânime em vez de mesquinho, dialogante em vez de vingativo, sincero em vez de hipócrita. Porque é livre, aceita que o interpretem, o leiam, o entendam, o avaliem de forma acintosa e velhaca. E aceita-o porque sabe que a liberdade e a dignidade são provas de resistência, coisa de anos a fio, um tempo contínuo de respeito e serenidade. Não tem de responder a banalidades, frustrações, mau perder, preconceitos.
É claro que por ter emoções não fica imune, mas prefere guardar essas mágoas para memória futura.

sábado, 6 de março de 2010

Tem chovido tanto!
As andorinhas estão à espera que as chamem.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Uma borboleta de asas mortas
voou.

Foi num poema que o vento lhe fez.

terça-feira, 2 de março de 2010

Asas de cabedal

Um homem não consegue entender a relação umbilical que uma mulher estabelece com a sua mala. Ao vê-la entrar numa loja, é-lhe impossível, talvez devido a razões genéticas, medir os níveis de dopamina, imaginar o enfatuamento, compreender os mecanismos neurológicos que atravessam o cérebro da mulher e a deixam extasiada à beira das prateleiras.E são poucos os homens que se atrevem a invadir aquele mundo místico, principalmente se for em época de saldos. A maioria fica à entrada como ateus à porta de uma igreja.Uma mala de mão talvez configure a maior das diferenças existenciais entre homens e mulheres. Cava um abismo, traça uma impossibilidade de entendimento. Para um homem, nada é mais confrangedor do que, num qualquer centro comercial, segurar a mala da esposa enquanto esta vai experimentar um vestido. São minutos absolutamente aterradores. Como não sabe como lhe há-de segurar, agarra-a como se agarra num saco plástico com asas. Aquilo não se fez para o seu corpo e rezando para que não passe ninguém conhecido, o objecto cai-lhe sem graça das mãos.Perante uma mala de mulher, um homem nada acha, confunde-se, é um ser perdido. Tacteia, apalpa, mexe, afasta, mas os olhos não vêem, os dedos nada tocam, seja um isqueiro, uma chave, uma caneta. Mergulhar as mãos no conteúdo da mala de uma mulher é como mergulhar num poço escuro. É preciso vir à tona várias vezes e gritar que não se encontra o que se procura. Está aí junto aos lenços de papel, diz ela impaciente. Os homens são todos iguais, não sabem procurar o que não se vê logo, seja em malas, seja em corações. São ambos labirintos onde os homens se perdem, aflitos e tontos. O mais fácil seria despejar tudo para cima de uma mesa, apontar um candeeiro e tirar as indefinições da penumbra. As mulheres sabem viver dentro das malas, os homens não. Os homens trazem tudo nos bolsos das calças porque têm medo de o trazer junto ao peito.Quando uma mulher compra uma mala, que contas faz ela à vida para comprar esta e não aquela? Que raciocínio ou que emoção a leva a optar por uma maior ou por uma mais pequena, com mais ou menos bolsas? É uma questão de estilo ou de existência? A mala de uma mulher é um segredo guardado com um fecho de correr. É um peso que ela traz aos ombros a combinar com os sapatos, a verdadeira cobertura para a nudez, um mistério com fivelas, um kit de sobrevivência urbana.A mala de uma mulher é o resumo da sua vida. A sua síntese. O rímel. A fotografia dos filhos. A fotografia dos cães. Às vezes do marido. O telemóvel. Cansaço. As chaves de casa. Um livro. O batom. A carteira. Um poema gasto. Moedas para o carrinho do supermercado. A lista das compras.
A mala de uma mulher é o seu coração com asas de cabedal.

Texto publicado no Jornal CorreioAlentejo