domingo, 8 de março de 2009

alentejo

Talvez para poderem descansar de si mesmas, as serras se tenham feitio planura e planície. Ou quem sabe para o horionte estar ali à mão dos olhos. Ou para o sol ficar até ao fim e poder morrer de pé. Ou para o céu se deitar ao comprido.
É por aqui, onde o silêncio ecoa, que eu vivo. É aqui, onde o mar se calhar farto de tanta água se fez terra, que eu tenho o chão que me suporta as raízes.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

De manhã
dás-me o teu sorriso
e eu penduro-o na minha cara.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

o poema de nada escrever
é sentir desgosto de ti
nos meus lábios.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

na carne de morango dos lábios,
por entre os dentes,
na textura aguada da língua,
no deslizar lento dos dedos,
nas mãos cheias de abismos,
no eco dos olhos

cresce um desassossego
e abre-se uma fome de pele.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

dou-te palavras

dou-te palavras ao ouvido
como se te desse mel.

Espessas e vagarosas
escorrem para o teu pescoço
e para os ombros
e depois para todo o lado,
e as minhas mãos,
felizes e açucaradas,
enfeitam o teu corpo
com as inquietações
formidáveis do desejo.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

ourique tem saudades que sabem a vinho

Antes de almoço, os homens bebiam em copos pequenos, não se demoravam muito tempo e levavam alegria nas bocas. Antes das mulheres migarem as sopas, era aquele o caminho, o desvio de duas ou três ruas, os passos apressados entrando na taberna, uma mão de mecânico, de carpinteiro, de lavrador, batendo com uma moeda de vinte e cinco tostões no balcão, engolindo o vinho de um trago, dizendo até logo que a patroa está à espera.
A venda era um altar onde os homens se iam benzer. O Ti Mira era uma religião, a taberna uma catedral e os homens maduros eram os seus discípulos. Pão e vinho. Fé nos petiscos.
À tarde, depois do trabalho, os homens traziam aquele destino nas pernas e bocados de presunto caseiro embrulhados num guardanapo. Traziam terra nas unhas e sol nos olhos e vinham ali matar a tarde e a sede. Cortar o queijo em fatias fininhas, dividir um pêro por dez, multiplicar metade de um pão, contar partes, afogar mágoas, fritar jaquinzinhos, derrubar medos, comer pardelhas, fazer juras, temperar saladas de mastruços, matutar na sorte, rapar cabeças de borrego assadas, amaldiçoar a vida, abençoar um neto que nasceu, cantar a despique.
A taberna era grande e tinha mesas de madeira e o balcão dava para muitos homens e houve um tempo em que eu tinha medo das peles de cobra pregadas na parede. E cada homem tinha um canivete porque num petisco que meta ossos, um canivete é uma questão de sobrevivência. E cada homem tinha uma voz grossa apoiada no cotovelo, e as vozes todas dos homens todos em uníssono formavam um coro de cigarras fumando cigarros de enrolar.
A venda era um espaço de cultura. Uma cultura viva, com sabor e cheiro, de boina posta, com calos nas mãos, barbas por fazer e botas cardadas, de transmissão oral, de saberes de torrões e luas, de perdizes e geadas, de montados e temperos.
O mundo todo era ali e o horizonte tinha pipas e barris de vinho. Era ali que se explicava a vida em palavras doces ou amargas, alinhadas em rebanhos mansos ou solitárias como lobos ferozes. A maior parte dos homens não lia livros. Mas sabiam ler as linhas do rosto. Interpretar o tom de voz. Concluir nos olhos. Responder nos silêncios. Rematar com ironia.
O Ti Mira aviava rodadas e por cada copo de vinho branco, eu bebia um copo de laranjada Cirel e comia tremoços, alcagoitas e ternura. E por ali ficava, horas a fio, ouvindo os homens a subir o tom de voz, montados nas asas do vinho.
Todos os dias antes de almoço e ao fim da tarde, os homens passavam por ali como o sangue passa obrigatoriamente pelo coração.
Uma parte de Ourique morreu quando aquela porta se fechou.
Para lá da porta, o pó vai enchendo os copos de saudade.
Às rodadas.
Até a memória fazer a conta.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

que desejos te acendo eu
se trago tudo na alma?

e se as palavras se me secam
ainda tão longe dos lábios

e se a tua carne se me cola aos olhos
como uma dor

que te posso eu dar
se nada trago no corpo?

apesar de mim
gostas de mim?

sábado, 14 de fevereiro de 2009

dúvida

pego nos pensamentos,
levanto-os a custo
e ponho-os vagamente
no céu que me resta.

para não me esquecer
de pisar o chão,
trago palavras vãs
nos bolsos
da minha vida.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

adeus

Quando eles se conheceram estava calor e a noite tinha um decote grande que deixava ver as estrelas todas.
E estava quente o banco de pedra onde ela, com olhos inquietos de ter chegado agora à vila, se sentava. Agitava-se como se fosse uma pequenina brisa perdida do resto do rebanho do tempo, e os pés, extremidades de carne de uma mini-saia de ganga, eram duas âncoras espetadas no cimento do jardim. Aqueles olhos não eram dali e aquele rosto nunca morara naquelas ruas.
Ela era jovem, daquela idade em que o tempo põe os corpos no seu molde e os arredonda e lhes dá uma textura de maçã. E não nos esqueçamos que era Verão e que a noite não conseguia arrefecer o calor que o dia lhe deixara. E ele, fazedor de palavras belas e domador de temperaturas, foi ter com ela e levou-lhe palavras frescas nos lábios. E com elas, quando as disse entre dentes, borrifou-lhe o rosto, o pescoço, os ombros, os joelhos e os olhos estrangeiros. E ela arrepiou-se com aquela mistura espessa de ar e de letras. Eram adjectivos e verbos que ele lhe tinha dito e que voavam já indomáveis no céu do seu coração.
Dali a nada, os olhos dele e os olhos dela eram já quatro pássaros castanhos poisados num fio de espanto. Tinham acabado de se conhecer, mas só a vergonha e a esplanada cheia lhes punha algemas nas mãos, açaimes nos lábios e nas línguas. Nenhum deles tinha sentido nada assim. As suas peles só tinham sido objecto de carícias da família, beijos de aniversário, de boa noite, de até amanhã, de despedida, nunca de desejo, nunca abaixo do queixo. Mas agora nascia ali um incontrolável apetite vertical de saliva e suor. Para quem não sabe, estas coisas acontecem assim de repente, na noite, por causa de uma aliança entre o brilho da lua e o silêncio das osgas.
Assim viveram durante anos, achando alimento no estarem juntos, lembrando o passado nas linhas da testa, vivendo o presente na água das bocas, preparando o futuro na fundura dos olhos. As noites eram empecilhos, necessidades parvas de dormir inventadas por quem não sabe o que é estar apaixonado. A escola um desperdício de horas passadas a conhecer nada quando já se tem tudo. Os dois eram um par de pleonasmos, um casal de redundâncias. Se um dava um ai, logo o outro fazia eco.
Respiravam-se um ao outro, pois senão morriam.
Mas um dia, um deles, não se sabe se terá sido ela ou se terá sido ele, deixou cair o olhar para o chão porque descobriu que a paixão era apenas um urso de peluche que dormia aconchegado entre quatro lábios. E ele, ou ela, não sabemos, aflito, quis apanhar o olhar e o peluche com as mãos, mas o outro já não deixou. Já não era capaz de mais. Estavam moídos, moribundos. A paixão matara-os para o mundo. Cada um tinha-se tornado o espelho do outro e o espelho partira-se com tanto beijo e tanta obsessão.
Um destes dias, um deles, não digo se foi ele ou ela, levava o poema Adeus de Eugénio de Andrade debaixo do braço.

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor, e o que nos ficou não chega para afastar o frio de quatro paredes. Gastámos tudo menos o silêncio. (…)

P.S. Você, que é ele ou ela, vá acabar de ler o poema.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Antes de ser pó

Um cemitério é um livro de páginas de mármore com cruzes na capa. De palavras enterradas em cinzas e ossos. De memórias desfeitas. De esqueletos de silêncio.
Não deviam fazer os muros tão altos e deviam plantar árvores de fruto e não ter árvores que levam as almas para o céu porque há almas que gostavam de ficar na terra e ter portões que não rangessem e era bom que as pedras das sepulturas não fossem tão tristes e tão frias e as flores crescessem da terra e cada pétala fosse da cor dos olhos dos que morreram. E os cemitérios deviam ser iluminados à noite para nós não termos medo das corujas que esvoaçam de nome em nome, de campa em campa, de jazigo em jazigo, como se fossem carteiros batendo à porta da saudade
1880-1964. Vida eterna. Aqui jaz. Paz à sua alma. Dos amados filhos e esposa. A lápide que tinha à sua frente fê-lo pensar que tão grande mistério como saber se há vida para além da morte é o de saber que vida houve antes da morte.
Andando por entre os corredores do cemitério e olhando para as campas, dividia as pessoas que ali estavam enterradas em duas categorias: as que conhecera e as que não conhecera. E isso fazia toda a diferença, pois ali entre sepulturas, havia uns que dentro dele ainda viviam de pé. Lembra-se dos gestos, da forma de andar, do timbre da voz, do rosto, de ter estado com eles aqui e ali, de um aperto de mão, de um abraço, de noites de álcool e conversas de mulheres, de trabalhos conjuntos, de lhes ter batido palmas ou injuriado, de o terem atendido ao balcão, de um jantar de amigos, de uma indiferença, de uma deferência, de uma discussão. São caleidoscópios, recordações, memorandos, fragmentos, recuos no tempo. Com traços de memória mais ou menos vincados, ele lembrava-se deles, ressuscitava-os com o pensamento e dava-lhes uma consistência, um passado, uma vida antes da morte. Enquanto ele fosse vivo, de alguma maneira, eles respiravam em si.
Agora aquele homem naquela fotografia tatuada na pedra, de bigode aprumado, de risco ao meio, não tinha raízes dentro dele. Não havia uma emoção, um princípio, uma ideia, que o ligasse a ele. Não o sabia definir, enunciá-lo, explicá-lo. E no entanto ele ali estava, de olhos abertos e sorriso preparado pelo fotógrafo, como todos os outros que ele conhecia. E pôs-se a pensar o que teria sido a vida daquele homem até a terra o comer. O que fez ele durante oitenta e quatro anos, desde a infância, passando pelo primeiro amor, pelas mulheres que teve, pelos filhos que fez, pelas paredes que levantou, pelos sonhos que ergueu, pelas doenças que o deitaram abaixo? Que homem foi aquela cinza e aqueles ossos? Que carne foi este pó?
Aquele traço entre as duas datas talhadas na pedra parece resumir toda a sua existência a um lapso, a uma inconsistência do tempo, a pó ainda antes de ser pó.
É estranho, mas um cemitério tem mortos que é como se nunca tivessem vivido.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Além corpo

Com os olhos agarrados como duas ventosas ao vidro húmido do copo de Vodka, disse que tinha descoberto a beleza interior dos homens. Havia limão e álcool no som das palavras e ela sugava a música alta por uma palhinha de plástico. Não sei se terá sido uma revelação repentina ou uma constatação amadurecida. Ela não o disse, mas ainda assim acredito mais na segunda hipótese. Estas coisas de dentro vêm de longe como peregrinos cansados, viajam às costas da idade, demoram a crescer como árvores, não entram por um café dentro, sentam-se à mesa da puberdade e dizem: o gajo é bonito por dentro. Não. É preciso tempo para que também uma mulher veja para lá da carne.
No princípio, as mulheres gostam é do litoral dos homens. Da brisa do hálito. Dos perfumes da maresia do peito. Dos olhos castanhos de areia quente. Das dunas perto do umbigo. Gostam de passear o olhar pela marginal dos lábios carnudos, gostam das costas largas, de se sentar num banco de frente para eles e morder a maçã de Adão, de ver correr o sal do suor. Adoram as sementeiras de barba de três dias onde as suas línguas vão fazer a monda e adoram os braços fortes como tornos onde elas põem os peitos.
No início, discretas e silenciosas, sem o verbalizarem, sem que delas escorram palavras carnais, as mulheres poisam nas pernas dos homens como mariposas de ferro. São colibris de metal extraindo o mel das suas bocas másculas, aranhas tecendo teias com patas de diamante. Colam o olhar à ganga, melhor, colam-no aos contornos e tentam adivinhar o que está por debaixo dela. Escalam um metro e oitenta de corpo, para baixo e para cima, comparando a harmonia que existe entre o relógio e os sapatos, entre a camisola e a cor dos olhos, entre a marca dos óculos de sol e o cheiro que o homem deita, entre o sorriso e a púbis. Pensam fantasias, sentem ardentemente, inebriam-se de desejo, mas calam-se mais do que os homens quando estes vêem mulheres estonteantes. Será mesmo assim?, pergunta este homem.
Mas agora ela já não está no início. Já não é o princípio de quando se vestia e se penteava e punha perfume e se mostrava num decote profundo para ser conquistada e conquistar. Passaram anos sobre a instantânea vontade de ter. Sobraram desilusões e prazeres mortos pela manhã na cama ao seu lado. O tempo trouxe-a até esta mesa como traz ao ninho um pássaro belo mas farto de voar e de ser adorado apenas pelas curvas da penugem que tem. Terá então havido alguém que lhe deu a provar para além da casca, da capa, da superfície, da pele, terá ela trincado um fruto mais sumarento por dentro, escutado umas palavras que lhe massajaram a existência dorida, terá visto o mecanismo do coração, terá degustado a doce resina do silêncio? Que homem esteve à altura de estar para além do corpo e lhe mostrou as cavernas onde a beleza interior se forma como estalactites de chocolate quente? Que homem conseguiu dar-lhe paz sem lhe tocar?
Mas parece-me que a descoberta não foi pacífica, pois quando o disse agarrou-se a um cigarro para não cair.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

No leito aberto do teu corpo
não durmo.

Ardo.

Entranho-me humidamente
num fogo de cerejas
que cresce no teu peito.

E a meio de ti,
nesse vértice incendiado,
sorvo água
nascente
das raízes
da tua carne.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Voltar atrás

Ainda o tempo não lhe tinha amadurecido o corpo e já ele lhe torneava a carne nua com mãos de homem feito.
Reparara nela quando um dia voltava do trabalho com o corpo a cheirar a terra e a boca a saber a cervejas. Ela, bonecas arrumadas aos dez anos, primeira menstruação aos doze, peito firme aos treze, escola abandonada no sétimo ano, olhos de mel, lábios de ameixa, cabelo dado ao vento, rosto da cor do trigo maduro, formas redondas, vestido curto, pernas de seda, tinha dezasseis anos e vinha das compras. Quando ela passou na rua como uma borboleta com as asas em brasa, ele acendeu um cigarro e ateou tabaco e desejo. Nesse primeiro dia nada lhe disse, só pensou o que os homens que nunca leram Platão pensam quando se excitam. Bovino, marcou-a logo ali com o ferrete da volúpia.
No segundo dia, quando se cruzaram no passeio estreito, ele disse-lhe coisas que os homens que nunca leram Eugénio de Andrade dizem às mulheres e que algumas mulheres preferem escutar a escutar palavras de Eugénio de Andrade. Ela não baixou os olhos nem teve vergonha das palavras que se metem logo por dentro da roupa. Pelo contrário, pôs mel na colher gulosa que ele trazia no olhar.
Estava farta de estar em casa. Tirando as telenovelas, não havia mais nenhum sonho dentro daquelas quatro paredes. Queria fugir às proibições dos pais, à loiça, ao ferro de engomar, à roupa comprada nas bancas da feira. Queria ter automóvel e passar junto das esplanadas de vidros abertos e rádio ligado, queria ir ao Algarve, à Expo 98, ir ao restaurante e pedir sobremesa. E além disso, já se sentia mulher que chegasse para se entregar a um homem calejado.
E assim, pouco tempo depois, num sábado à noite, a Primavera da verdura dela foi engolida pelo suor do Verão dele. Sem mãos dadas, sem poesia, sem cinema, sem dia dos namorados. Debaixo do peito dele passou logo de flor a fruto, de ovo a pássaro, de erva a pasto, de orvalho a pó. Talvez até o amasse – como se ama o carcereiro que nos abre a porta da prisão.
Quando deixou a casa dos pais já ia grávida de cinco meses e a Expo já tinha acabado. Vivia agora em duas húmidas assoalhadas numa das pontas da vila e pouco saía, a não ser para ir às compras e às consultas ao centro de saúde. No dia em que a filha nasceu, Albufeira era ainda uma miragem.
E assim viveu dez anos, quatro filhos nos braços e um homem entre as pernas, esperando as cartas da segurança social no fim do mês, esperando as telenovelas, esperando que nessa noite o seu homem não tivesse vontade.
Ela já não tinha. Queria agora voltar atrás, regressar ao ponto de partida, fazer de conta que ele não a vira nesse dia. Apesar de não perceber de gramática, queria usar o terceiro condicional e recomeçar, reinventar o destino, dar o mel a outro.
Como não podia mudar o tempo, mudaria ela. Pintou os lábios da cor das ameixas suculentas, pôs fermento no trigo da pele e vestiu o vestido curto para que outros homens fizessem deslizar os olhos pelo cetim das pernas. A juventude interrompida bateu-lhe à porta do espelho do quarto e ela deixou-a entrar.
Neste Outono, um desejo serôdio desponta e o corpo dela quer ser Primavera outra vez.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

barquinho de papel

A realidade não passa de um barquinho de papel
forjado no fogo dos teus dedos.

Agarro-os,
o fogo,
os teus dedos
mais o barquinho,
e ponho tudo à deriva
no dorso da minha língua
de noite
a dois
que é como os barquinhos
mais gostam de navegar.

in, Tricotar o Tempo, Edição de Autor

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Labirinto

Quando olhamos para o outro não vemos quase nada. Ou melhor, vemos a superfície, vemos o rosto, os olhos, o andar, as expressões, as atitudes.
E presumimos que sabemos tudo sobre ele e o que vai dentro dele, o que pensa, o que chora, o que ri, o que deseja. Como uma esponja cega vamos absorvendo a imagem que o outro nos dá, tomamo-la por definitiva dia após dia, ano após ano. E dizemos que nem pensar, tal pessoa é minha amiga, punha as mãos no fogo, ele não era capaz disso, conheço-o como as minhas mãos, dava-lhe a minha camisa, íamos os dois até ao fim do mundo se fosse preciso. Ideias de unha com carne. Sangue com sangue. Duas faces da mesma moeda. A tudo isso juntamos os anos de convívio, o historial da relação, as confidências maiores, as conversas grandes como uma noite inteira.
E concluímos qualquer coisa forte. E temos certezas. E não nos enganamos.
O hábito é um animal de homens.
Mas não. Não é assim. Há sempre mais do que aquilo que parece. Há mais para lá da capa, quanto muito entramos no preâmbulo, com um pouco de sorte na introdução, com um golpe de génio temos acesso ao primeiro capítulo. O clímax passa-se dentro do hedonismo do cérebro, na luxúria da carne, no silêncio do grito, na nossa ausência. Uma pessoa é um livro grande de mais para ser lido de enfiada por outra. O futuro vem, às vezes, por causa da ansiedade, muito antes do presente e o passado é lá mais à frente, já depois do condicional. A linguagem da vida interior, cavernosa, lá no sítio onde se fermentam os sentimentos mais excelsos, tem códigos, sintaxe e semântica, inacessíveis ao mais comum dos amigos. A interpretação é complexa, não é verdadeiro/falso, escolha múltipla, composição de vinte linhas. O conhecimento das entranhas do outro requer um mestrado em multiplicidade e uma tese de doutoramento em labirintos. Coisa para duas vidas consagradas a Freud. Só nós nos conhecemos a nós próprios. Ou melhor, apesar da incompetência em assuntos existenciais ainda somos aqueles que melhor nos aproximamos de nós. Por vezes, num assomo de clarividência e de coragem, conseguimos alcançar a génese daquilo que somos e do material de que somos feitos. E umas vezes voltamos felizes e outras vezes não. A descoberta nem sempre é boa e motivadora de orgulho. Fechados a sete chaves e imunes até às bebedeiras mais aventureiras, há sítios onde ninguém consegue chegar. Por mais que se tente e por mais que nós, solícitos e solidários, queiramos levar amigos lá e eles também queiram ir, há um labirinto ali na verdadeira entrada de nós que faz perder os outros. São palcos de mil peças em simultâneo, personagens bizarras lambendo feridas, pássaros com raízes nos dorsos em vez de asas, caminhos cruzados, decisões abraçadas aos seus contrários, vazios que andam à roda, à roda, à roda.
O pior labirinto é aquele que é construído por nós. Fazemos dele um ninho de perdição. Palha a palha, pena a pena. Os dédalos exigem uma enorme capacidade de raciocínio para se sair deles. Quando tentamos, a emoção atravessa-se no caminho, despista-nos, ilude-nos e condena-nos a lá ficar para sempre.
O que nos conforta é que até os labirintos têm sítios onde nós gostamos de estar. Sozinhos, é claro.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Fotografias

As fotografias são pedaços de mundo para o fotógrafo comer mais tarde.
Quando a rotina lhe tira o apetite de esplendor e sente mágoa de tudo ser repetitivo e sente míngua de vertigens e voragens, ele revela-as, coloca-as diante de si e mata a fome de trigais, crepúsculos e corpos de mulher.
O fotógrafo é uma formiga que acha e carrega instantes perdidos e miolos que se soltaram do fermento do universo. Ata-os aos molhos com os olhos e leva-os a tiracolo por um carreiro de passos solitários. Um fotógrafo inteiro é por natureza um desalinhado, um garimpeiro, um egoísta, um caçador furtivo. Descobre migalhas de fulgor onde mais ninguém as vê, rouba eternidades ao efémero, arranca ilusões das próprias raízes da realidade e filtra gritos até que só já haja silêncio e consegue que nesse mesmo silêncio de papel todos os gritos se ouçam.
Quando o fotógrafo revela revela-se, diz-nos com quem fez amor no orvalho, no areal, no restolho, na cama, no céu, na rua, na noite, à torreira de Beja. Dá-nos os mapas parados de todos os movimentos do mundo e mostra-nos que é com mecanismos de sensibilidade e luz que eles se animam. Numa fotografia vemos a corrente que leva a água, sopra-nos no rosto o vento que agita a árvore, limpamos o pó que cobre a memória, fazemos festas ao cão que dorme no nosso contentamento de o termos, choramos a dor preta da morte, abrimos um postigo para entrar o fresco, tacteamos a capa do livro que a muito custo sustém palavras inquietas, sentimos o arrepio do deleite em curvas de carne, brincamos com a infância que volta, olhamos o sol que se mete no mar para aquecer os peixes durante a noite, perscrutamos ombros e cabelos a contraluz, seguramos um crucifixo que benze um peito redondamente pecador, provamos uma maçã suculenta que nasce do ventre de Eva, lembramos o amor que se perdeu quando lhe dissemos que era amor, perpetuamos a amizade num abraço, vemos o passado a olhar-nos de frente e a perguntar-nos se valeu a pena termos chegado aqui, seguramos na mão as chamas de um fogo a dois que o tempo congelou em temperaturas de papel acetinado-mate, pressentimos que um filho, uma filha, à medida que se separa de nós e enceta a viagem da vida, mais perto vai estando da essência do nosso afecto.
Uma fotografia é um beijo dado com os olhos. É um furto qualificado, uma dentada no quotidiano, um poema que a vida diz a todo o instante, mas que só alguns conseguem sentir vividamente. O fotógrafo é o tradutor desses poemas vivos, é o intérprete dessa magnifica linguagem de firmamentos e de sorrisos.
E uma fotografia de uma mulher bonita é um beijo dado com uma língua de aumentar que faz zoom corpo adentro da coisa.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

O pastor

No montado, o pastor guarda o silêncio todo na boca. As palavras ditas e os outros ruídos do mundo não passam por ali que o pastor não deixa. Ali, só quem passa é a brisa e mesmo essa vem já ao fim da tarde, fresca, fugida do sol, para pentear e endireitar a erva que o gado pisou.
Para além de silêncio e gado, o pastor também guarda o tempo. Aliás, é ele que tem a chave do mecanismo do devir. É ele que abre as manhãs. Ao acender o primeiro cigarro, puxa fogo ao sol para que este nasça em pequenos gritos de luz. É ele que acorda o balido das ovelhas, as asas dos pássaros, a côdea do pão, a humidade das rãs, a rijeza do cajado, o rabo dos cães, a viscosidade dos lagartos, o canto dos pintassilgos, o veludo das borboletas, as sombras das árvores. É ele que cria a fome de talhadas de toucinho e copos de vinho, que convida a folga para dentro do corpo depois de almoço, que entrega um mapa da erva boa ao rebanho, que traça o plano de voo de um falcão, que aquece a água da barragem, que, a toques de bordão, vai fazendo girar a terra toda, como um carrossel feito de ponteiros e doze números, até o sol, pintado da cor das laranjas de umbigo, se esconder a pouco e pouco num buraco ali para os lados de Garvão. Para quem não sabe, á ali que o astro dorme. É o pastor que com o isqueiro acende as estrelas, os olhos das corujas, o sono das galinhas, o medo do escuro, o descanso dos cães, o desassossego dos ratos.
A pelica é um ninho de andorinhas, um refúgio de pardais pequenos, uma toca de coelhos vadios, uma malhada de borregos pequenos, a casa do coração.
O pastor é um farol guiando ribeiros e garças, uma guarita onde os trigais descansam do vento, um cristo-rei de braços fechados abençoando cerros e planuras.
O cajado é a trave mestra do mundo. Sem ele a pastagem era invertebrada. É ele a espinha dorsal do tempo, a viga de azinho que suporta o horizonte, o pau que sustenta as nuvens, que aguenta o azul, que fura o céu para fazer chover, que é fálico porque a terra à vezes arredonda de mais. O cajado é o general dos cães. Sem ele, os cães eram soldados insurrectos e as ovelhas talvez perdessem a sua obediência de lã.
Um pastor sem cajado é um eunuco conquistando mulheres.
À noite, a Estrela Polar guia-lhe a mão - mais o outro cajado que guarda o desejo - pela galáxia da pele e só a pára quando o corpo todo atinge o céu. No campo há flores que são frutos das sementes que vêm de dentro dele. São pequeninas flores verde-fogo que crescem à beira dos poços da alma.
Os seus olhos campaniços são dois camaleões poisados na terra. Ora amarelo-pó no verão, ora castanho-torrão no outono, ora cinzento-água no inverno, ora verde-erva na primavera.
O rebanho entretém-se numa estratégia de ruminação de erva. Os cães lambem uma ferida. O pastor rumina os pensamentos. São todos intérpretes de um destino que uma cegonha anuncia nas asas quando voa.
Eu passo na estrada.
O pastor acena-me e eu desligo o rádio.
Também eu preciso de sentir o sabor do silêncio na minha boca.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Frustrações e Compensações

Vivemos entre estes dois mundos. Um pé num, o outro pé no outro. E entre os pés, a meio de nós, há um buraco fundo, um precipício negro, e o objectivo da nossa vida, ainda que não o saibamos, é não cairmos para dentro dele.
E cada um, à sua maneira, agarra-se às margens do abismo como pode. Inventando pontes, sonhando acordado, amortecendo a queda, tomando comprimidos ou escrevendo.
Assim que começamos a ter noção da relação que há entre o presente, o passado e o futuro, logo que começamos a ter memória e expectativas, papéis a desempenhar, supostas honras a defender, ideias de metas e de adversários, dá-se início ao suplício. Aproveitando o instinto de sobrevivência e os valores que nos são metidos no corpo, misturados com a sopa, a missa e as aulas, logo tratamos de separar o bem do mal, a rosa dos espinhos, a carne do osso, deus do diabo, os amigos dos inimigos, a dor do prazer. Ou seja, tratamos de abrir crateras, de erguer muros, traçar fronteiras, afirmar descriminações, para pensarmos que temos os dois pés bem assentes no chão. No nosso chão, esse confortável e cínico quintal sagrado, onde crescem carinhos juntamente com a erva daninha do egoísmo e da presunção.
E, atados aos carris onde nos puseram, alucinados nesse caminho que é a vida em sociedade, nessa disputa, não nos apercebemos que por causa das frustrações andamos, diariamente, a comer compensações às talhadas como quem engole colheradas de óleo de fígado de bacalhau. Para fazer bem aos olhos. Mas nós continuamos a não conseguir ver o que está para lá do espelho de enganos. Continuamos a não conseguir ver que vivemos entre esses dois mundos, num equilíbrio feito de faz-de-conta.
O que é preciso é ir em frente. Compensando, compensando.
Inventamos realidades. Criamos cenários. Ditamos regras. Prometemos éter. Despachamos. Punimos. Protegemos. Bebemos para esquecer. Temos poder. Altas cilindradas. Televisores de não sei quantas polegadas. Filhos com não sei quantas namoradas. Mandamos. Exigimos. Regressamos. Trememos de excitação se tivermos Dr. antes do nome. Pomos e dispomos. Impamos com os nossos apelidos de relevo. Apontamos soluções. Corrigimos. Queremos ser o topo da pirâmide. O Rei-Sol, Ícaro, Fénix. Isto tudo, como já sabemos, feito só com um dos pés. O outro, esse pé frágil, esse calcanhar de Aquiles, está a pisar terra traiçoeira. Essa terra chama-se Eu, chama-se inquietação, chama-se o nosso nome, chama-se memória, chama-se consciência. E como não queremos que vejam este pé enjeitado e escorregadio, inventámos aquela expressão de fazer as coisas com uma perna às costas.

P.S. Eu é que já não sei com que pé escrevi esta crónica.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Desejo meu,
és apenas uma ave voando,
teimosa e incerta,
no espaço infinito
do seu próprio ovo.

sábado, 31 de janeiro de 2009

Desejar
é tricotar o tempo
à espera da medida
do teu corpo

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Vírgula

A minha escola não começou com a compra da mala, dos cadernos, dos lápis, da borracha. Nem sequer começou com o abecedário, a junção das sílabas, dois mais dois, sujeito, verbo e complemento. A minha escola começou antes da matrícula, antes do livro de leitura, antes do mundo ter sequer seis anos.
A minha escola começou com uma Vírgula. Uma Vírgula pequenina.
Perto de minha casa, numa garagem, ao fim da tarde, Dona Catarina dava explicações aos alunos da Escola Primária. Lá se faziam os deveres: as contas, os problemas, as redacções. Apurava-se a caligrafia, decorriam ensaios do grupo coral da tabuada, ecoavam ditados sem réguas que os castigassem, aperfeiçoavam-se cópias, limavam-se feitios distraídos, substituíam-se ideias de ninhos e piões, decoravam-se rios e reis, aprendia-se a pátria e o ultramar. E a meio, às cinco e meia, comia-se pão com manteiga barrada com açúcar amarelo e bebia-se café com leite.
No tempo em que o marido da Dona Catarina tirava o carro da garagem às quatro horas da tarde para ser montada a sala de aula com quadro negro e tudo, eu ainda não andava na escola. Eu ia porque queria ter uma bata branca e lápis de cor e não havia televisão.
Sentava-me numa cadeira ao lado da mestre. Era o assistente do giz, o operário do apagador, o arrumador de cadernos, o pastor do relógio, o aparador de lápis, o encarregado da Vírgula.
Era essa a parte que eu mais gostava. Também era bom cantar a canção do dois, pintar a bandeira de Portugal e copiar por cima de papel vegetal, mas sem dúvida do que eu mais gostava era dos ditados. Por causa da Vírgula. Quando o som do giz branco comia o silêncio do quadro negro entoando a palavra Ditado, os alunos da quarta classe abriam os cadernos e eu ficava feliz. E a professora começava a ditar: Parábola dos sete vimes. Era uma vez um pai que tinha sete filhos. Quando estava para morrer vírgula. E aqui, precisamente aqui na vírgula, vinda da porta que dava para o quintal, uma cadela pequenina e franzina entrava em cena e ladrava três vezes. E Dona Catarina, dona da Vírgula e do ditado todo, mandava-a embora e lá ia eu, armado em pajem da pontuação, acompanhá-la até aos seus aposentos. E a cada breve respiração do complemento, que é como quem diz a cada vírgula, do lado do quintal dos diospiros maduros, lá vinha outra vez a Vírgula interromper a sintaxe do discurso. E nós ríamos todos muito. Que bom que era que uma frase não fosse só letras de ponta a ponta, pois assim as palavras vinham montadas em quatro patas e abanavam o rabo quando nos viam!
Mas um dia às quatro da tarde o carro não saiu da garagem. Eu esperei até ser noite, mas os motores do carro e da vida toda não pegaram. Ficaram quedos, mudos. Morreram como uma avó querida morre, de repente, durante o sono e nos deixa enterrados em solidão.
O pó veio e sentou-se nas cadeiras. O mofo ocupou as mesas todas. O tempo é que ditou as regras. O silêncio ouviu e calou - o silêncio não tem vírgulas para se poder rir. O giz amarelou. O açúcar amarelo amargou. O pão secou. O café, já sem leite, morreu de tanto luto. A data gelou no quadro. O relógio baixou os braços. Os diospiros gretaram de tanto doce. A porta prendeu o quintal. E a tabuada era apenas um multiplicador de fantasmas calados e errantes. Noves fora nada. Dona Catarina fechou a escola.
As razões sabia-as a minha mãe que só me disse que ia a um funeral. E que ficasse com a vizinha.
Eram quatro horas da tarde. Comecei a ditar. Em voz alta. O texto começava com uma vírgula.
Ainda hoje ouço os textos a ladrar três vezes a meio das frases.
Ponto final parágrafo. A Vírgula morreu.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Corações

Há corações que logo à primeira cerveja, ajudados pelo ar quente do cigarro, sobem até perto da boca como se fossem balões vermelho-sangue atados a uma veia de poeta, esvoaçando no céu da conversa.
São corações que não respeitam a gravidade. Nunca caem aos pés, antes pelo contrário sobem sempre porque têm um gás alado e inebriante que se extrai das raízes das paixões maduras. (Apenas alguns homens e mulheres sabem onde o podem encontrar).
Têm almas de cigarra, batem desalmadamente na ponta da língua, coisas vermelho-sangue voando felizes no céu-da-boca.
Não escondem, não se escondem, saltam para a mão para todos verem como batem e como caminham felizes pelas artérias da memória. Mostram a aorta que às vezes irriga tudo de prazer e outras vezes os deixa sem pinga de sangue. E também mostram, bem ao perto e ao pormenor, as cicatrizes dos desgostos, os sítios onde a setas ficaram cravadas, as arritmias provocadas pela electricidade dos olhos, os glóbulos brancos dos lençóis em desalinho, os vermelhos dos olhos vermelhos de choro, as capilares que levam a mágoa na sua corrente, uma veia que numas asas e bico de colibri se soltou da pele que é a prisão das veias e provou o sabor daqueles lábios vermelho-carne, o miocárdio que é o responsável pelo desejo maior.
Há corações que fazem duma conversa uma passadeira de uma prova de esforço e não param até que no tampo da mesa se sintam as batidas cardíacas por minuto, na montra do café estejam expostos os Raios-X e o televisor seja um monitor de electrocardiogramas.
Há corações ao alto.

E há corações mudos. Aprendizes da cartilha do silêncio. São relógios de ponteiros servis dando horas certas, bombeando rotina, picando o ponto. Podiam ter sido relógios de cozinha ou de sala, calhou a serem relógios de peito com mecanismos de sangue que não aquece nem arrefece.
Há corações que são funcionários públicos empregados no escritório da vida. Têm hábitos das nove às cinco e trazem comida de casa. De resto só comem em casa.
A maior parte das vezes estão sentados muito direitos, agrafados à burocracia do ritmo cardíaco. Assinam os ofícios das frases feitas e da normal distribuição do oxigénio e nada percebem da poesia das pulsações exageradas, dos calafrios e das tensões altas.
Há corações que são pedras frias dentro de poços fundos.
O carne do corpo as tábuas do caixão. Eles o morto.
Têm alma de formigas, vão em carreirinha, sobrevivendo. Não se lhes conhece um desvio no aparelho sanguíneo, um aumento de pressão arterial, nunca assomaram à boca, muito menos saltaram para a mão. Ali ficam na gaiola do peito, pássaros quedos, uma vida inteira comendo alpista e bebendo água da torneira.
Para eles a adrenalina é um mito. Apenas ronronam de vez em quando como gatos preguiçosos deitados num cesto com uma coleira posta.
Não palpitam, não aceleram, nem inventam outros aparelhos circulatórios.
São meros pace-makers.

Numa vida a dois pode haver um de cada qualidade.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Palavras Perdidas

Perdeu palavras pelo caminho. Dantes sabia mais, tinha aliás sempre as mãos e as bochechas cheias de palavras. Dessas que se vestem de neblina e de opacidade e os dicionários trazem em segundo ou terceiro ou último lugar para definir os mesmos sentidos, mas que por virem nesses lugares secundários são menos geométricas, menos gramaticais e mais etéreas, mais libertinas.
Tinha a boca sempre cheia de palavras que ninguém queria dizer. E essas que ninguém quer dizer são as que ficam para lá das reticências, dos pontos de interrogação, dos etc. e dos pontos finais. E ele, com a sua língua afiada nos vocábulos cremosos, ia além da moral e rasgava as pontuações que são as causadoras de todos os silêncios cobardes.
Houve um tempo em que nada ficava por exclamar, nenhuma raiva, nenhuma ternura morria com falta de ar, sabia desatar todos os nós onde as gargantas se enforcam, aquecia o frio do estômago, descobria sempre um significado para todas as coisas. Tudo tinha voz, um clamor, uma razão, uma linguagem, um troar, uma caixa de sons feitos pelos dentes. Nenhum sentimento ficava por mostrar, nenhum sentido ficava invertebrado, nenhum brado ficava por dar, nenhuma paixão por gritar, nenhum ai ficava no peito. As palavras eram tantas que pareciam bandos de estorninhos pondo oralidade nos céus.
Tinha os bolsos sempre cheios de palavras estranhas. Eram pedaços de vidas que se desprendiam das bocas, vocábulos caídos de um poema dolente, sons escorraçados, letras trucidadas pelo vazio de uma relação entre um homem e uma mulher, termos vadios, ideias sem eira nem beira. E como quem tira um pássaro de uma gaiola ele tirava as desusadas palavras dos bolsos e punha-as a cantar ao sol.
Mas agora já não inventa mundos de algodão com pés de cereja, já não escreve poemas meio redondos, meio erectos. Agora só já faz ditados. O alfabeto é um bocado de pão às secas, uma receita de cozinha que ele segue à risca para lhe alimentar a existência e para o manter vivo e velho.
Perdeu as palavras pelo caminho como quem perde o cabelo. Uma a uma, um a um. Sem ele dar por isso caem a seus pés. Um dia e outro, uma noite e outra. Uma palavra que se esquece, outra que lhe queima os lábios, outra enforcada na garganta, outra morta, assassinada, apodrecendo dentes e gengivas, outra presa na malha do tempo. Quando deita as mãos à cabeça já não tem lá nada. Nem cabelo nem palavras. Encontra apenas um silêncio calvo a cobrir-lhe a memória. Os papéis que escreveu são túmulos de cinza, morcegos mortos colados à folha.
É como se as palavras abandonassem as asas dos estorninhos e se tivessem transformado em lesmas que vão deixando uma omissão viscosa por onde passam.
Ele é uma lesma gorda que se contenta com a primeira palavra do dicionário. Já lhe chega o sentido básico.
Já nada diz, rasteja, cala-se afogado em ranho e moleza.
Está perdido num labirinto. Precisa urgentemente de um fio de Ariadne.