terça-feira, 23 de novembro de 2010

Maçã de Adão

O princípio do homem é a carne.
É ela que descasca a pele da inocência.

Na aula de Ciências Naturais,
no desenvolvimento do sumário sobre o sistema reprodutor,
a professora não lhe disse que uma noite
o escuro do quarto começaria a arder
lentamente
e depois, num incontrolável
incêndio de flanela
e posters,
iria ficar inteiro
nas suas mãos.
E foi ele,
sozinho,
com o coração
a subir e a descer
as escadas do peito,
de olhos boquiabertos,
a boca ímpia,
não contendo um braço,
esticando as pernas
como cordas de violino,
foi ele, tonto,
que descobriu que
das mãos inquietas daquele fogo
jorra uma água densa aos gritos.

( Continua)

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Sou um ladrão do teu rosto
e do teu resto.
E quando ninguém me vê
escondo-te no bolso da minha camisa.
Percebes agora
que é por causa disso que as camisas
trazem os bolsos do lado do coração?

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Cada vez

Não sei de quem é, mas é belíssimo:

Cada vez que se ama é a única
vez que se ama.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Vinho


As raízes do vinhedo agarram-se à nossa alma de xisto, granito e calcário e do nada, da poda, do ventre de um esqueleto castanho nascem folhas que se vão, lambidas pelo sol, inebriando de verde.
E depois, lentamente, as uvas irrompem, iluminam-se e ganham forma de mulheres redondas. São mulheres tintas e mulheres brancas aos cachos enfeitando a planura.
Para as uvas ficarem mais doces, um silêncio de açúcar percorre a vinha toda.
E da secura dos torrões e do azul do céu aparecem bichos e pássaros à procura de um qualquer bago maduro.
Os homens querem que o Verão se despache. Querem que a insolação termine e a vindima chegue, querem que o imemorial ritual comece e que as uvas atinjam a maturação e derramem por fim a sua essência, pois o vinho é o sangue da terra a correr nas veias dos homens.
Quem faz vinho é um alquimista de sentidos. Quem faz vinho liquidifica o prazer.
Dentro de um copo está o Alentejo todo: a história das gentes, a identidade de uma região, as tabernas, o sol teimoso, a lonjura, montados, cortiça, botas cardadas, noites perdidas, modas, restolho, cal.
O vinho tem palavras frutadas dentro dele. São adjectivos superlativos de superioridade, são verbos de tentação, substantivos brancos, exclamações tintas. O vinho é um diálogo entre um homem e a sua raiz.
Quem nunca pisou uma vinha e nunca entrou numa adega está incompleto. Falta-lhe ir a montante da seiva, perceber a complexidade, deixar entranhar o perfume, absorver o percurso todo.
Uma garrafa de vinho tem corpo de mulher. Observar a forma, passar os dedos pelo vidro, recitar o rótulo, sacar a rolha, encher o copo, são os preliminares de um absoluto contentamento gustativo.
O vinho gosta de queijo de Serpa, de casqueiro, cabeças de borrego, jantares de grão, migas, linguiça assada e sopas de tomate. Às vezes, o vinho é servido em copos grossos, encosta-se aos balcões e canta a despique, faz quadras, discute o destino. Outras vezes, deitado em copos de pé alto, o vinho é mais intelectual, lê livros, discute filosofia.
Mas em ambos os casos é capaz de falar noites inteiras porque as bocas estão felizes.
Um jantar sem vinho é um jantar oco, uma mesa despida, um monólogo de dentes.
O vinho é coisa principal, pois ele é um rio a correr alegremente entre as margens de uma açorda de coentros.

Publicado no Jornal CorreioAlentejo

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Setembro

Gosto de Setembro porque em Setembro começa o declínio da luz. E luz a mais apodrece a poesia. Come-lhe os ossos. Adormece-a. Enfraquece-lhe a alma pungente. Engana-a com tanta luminosidade. Quanto muito escrevem-se umas linhas sobre gaivotas rasgando o azul. Ou sobre um pôr-do-sol numa falésia. Ou sobre um corpo bronzeado de mulher a arder nos olhos de um homem. Pão com melão no Verão. E pouco mais. De Verão as palavras não se endireitam. São coisas moles. Preguiçosas. Dormentes. Sentadas em esplanadas. Assadas no carvão. Deitadas na praia. São sons que se arrastam com areia nos pés. Enfiadas em chinelos de praia, riem-se e pronto.
Não têm angústia, não têm nada. É tempo a mais de transparência.
Mas em Setembro começo a ter esperança outra vez, pois o sol é um balão cor de laranja que morre espetado nos picos dos figos da Índia. Em Setembro já há mais noite e por isso começo a ver melhor o que está dentro do ocaso da vida. E as palavras moribundas, as palavras secas, as palavras bronzeadas, as palavras com restos de camarão cozido entre os dentes, pressentem o definhamento da claridade. E ficam felizes. Aliviadas. Pressentem que as nuvens hão-de vir e que depois virá o vento e depois as formigas de asa e depois a chuva e depois o frio e depois as camisolas de lã e depois as lareiras acesas e depois as castanhas assadas e depois as ruas sem ninguém e depois o vinho tinto e depois o ânimo e depois as conversas em que as palavras são sopas de açorda temperadas com coentros e um dente de poesia. Até às tantas.
Em Setembro, depois de sair de um deserto de sol, apetece-me arrumar a vida. Apetece-me pensar outra vez, recomeçar a sentir a fragilidade da existência, regressar à dúvida, cimentar ilusões.
Apetece-me regressar à rotina, preparar a lenha de azinho, fechar as janelas, calçar pantufas, voltar a ler antes de dormir.
Em Setembro já há um prenúncio de romãs doces na minha boca e por isso não me importo que a luz se desprenda das árvores e morra.
Texto publicado no jornal CorreioAlentejo

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

O desejo é um fruto
que apetece comer verde
num tempo qualquer.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

A ternura dos quarenta

A ternura dos quarenta é um jornal aberto nas palavras
cruzadas que se cruzam na vida
e delas não se encontra o significado
absoluto, apenas sinónimos incapazes de
pôr um ponto final
na indefinição,
é uma gata a dormitar
nos joelhos quebrados,
é um copo de vinho vazio a
enfiar uma rolha nas pálpebras,
é um fogo a arder devagarinho
até que a cinza dê por finda a noite.
O corpo é uma jangada de ossos
que o trouxe até aqui.
O caminho foi como foi.
A viagem foi coisa que ele não comandou,
mas nunca aceitou que a razão
fosse uma âncora que parasse o coração.
Agora atracou em segurança.
Mas se os pássaros que regressam
o levassem de volta, ele ia à procura do princípio
e levaria as algibeiras da alma cheias de desejo
para dar de comer às pombas
que se recusaram a poisar nas suas mãos
vazias de milho.
A hipófise já não é uma hipótese,
é apenas uma cigarra muda.
As hormonas são formigas sem fome
que perderam o carreiro e morrem antes de chegar ao umbigo.
O tempo útil de emoções foi tão curto.
Perderam-se horas
e dias
e anos matutando, matutando,
os egoísmos silvando na noite como cobras frias,
esperando que a mão do outro
viesse,
com dedos de sol,
enxugar a tristeza do rosto,
esperando que os braços do outro
fossem uma ponte
estendida
entre as almofadas
para não morrerem afogados
na fundura do quarto.
E entretanto a traça da idade veio
e roeu as golas do ânimo.
A libido está pendurada num cabide
e tem os forros cheios de bolas de naftalina
para sobreviver à oxidação do desejo.

In Maçã de Adão

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Adeus

Quando eles se conheceram, estava calor e a noite tinha um decote grande que deixava ver as estrelas todas.E estava quente o banco de pedra onde ela, com olhos inquietos de ter chegado agora à vila, se sentava. Agitava-se como se fosse uma pequenina brisa perdida do resto do rebanho do tempo, e os pés, extremidades de carne de uma mini-saia de ganga, eram duas âncoras espetadas no cimento do jardim. Aqueles olhos não eram dali e aquele rosto nunca morara naquelas ruas.Ela era jovem, daquela idade em que o tempo põe os corpos no seu molde e os arredonda e lhes dá uma textura de maçã. E não nos esqueçamos que era Verão e que a noite não conseguia arrefecer o calor que o dia lhe deixara. E ele, fazedor de palavras belas e domador de temperaturas, foi ter com ela e levou-lhe palavras frescas nos lábios. E com elas, quando as disse entre dentes, borrifou-lhe o rosto, o pescoço, os ombros, os joelhos e os olhos estrangeiros. E ela arrepiou-se com aquela mistura espessa de ar e de letras. Eram adjectivos e verbos que ele lhe tinha dito e que voavam já indomáveis no céu do seu coração.Dali a nada, os olhos dele e os olhos dela eram já quatro pássaros castanhos poisados num fio de espanto. Tinham acabado de se conhecer, mas só a vergonha e a esplanada cheia lhes punha algemas nas mãos, açaimes nos lábios e nas línguas. Nenhum deles tinha sentido nada assim. As suas peles só tinham sido objecto de carícias da família, beijos de aniversário, de boa noite, de até amanhã, de despedida, nunca de desejo, nunca abaixo do queixo. Mas agora nascia ali um incontrolável apetite vertical de saliva e suor. Para quem não sabe, estas coisas acontecem assim de repente, na noite, por causa de uma aliança entre o brilho da lua e o silêncio das osgas.Assim viveram durante anos, achando alimento no estarem juntos, lembrando o passado nas linhas da testa, vivendo o presente na água das bocas, preparando o futuro na fundura dos olhos. As noites eram empecilhos, necessidades parvas de dormir inventadas por quem não sabe o que é estar apaixonado. A escola um desperdício de horas passadas a conhecer nada quando já se tem tudo. Os dois eram um par de pleonasmos, um casal de redundâncias. Se um dava um ai, logo o outro fazia eco.Respiravam-se um ao outro, pois senão morriam.Mas um dia, um deles, não se sabe se terá sido ela ou se terá sido ele, deixou cair o olhar para o chão porque descobriu que a paixão era apenas um urso de peluche que dormia aconchegado entre quatro lábios. E ele, ou ela, não sabemos, aflito, quis apanhar o olhar e o peluche com as mãos, mas o outro já não deixou. Já não era capaz de mais. Estavam moídos, moribundos. A paixão matara-os para o mundo. Cada um tinha-se tornado o espelho do outro e o espelho partira-se com tanto beijo e tanta obsessão.Um destes dias, um deles, não digo se foi ele ou ela, levava o poema “Adeus” de Eugénio de Andrade debaixo do braço.
Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,e o que nos ficou não chegapara afastar o frio de quatro paredes.Gastámos tudo menos o silêncio. (…)
P.S. Você, que é ele ou ela, vá acabar de ler o poema.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Cansadas do dia,
as palavras descansam
nos braços ternos da noite.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

A espuma dos dias

Que profundidade tem a nossa vida? Ancoramos as nossas decisões no aprumo da verticalidade ou pelo contrário roçamos a superfície da vanglória? Será que somos feitos de substância ou somos apenas embrulhos luzidios? Quantas palavras que valham a pena dizemos nós durante um dia inteiro? O que é que nós percebemos desta coisa intrincada que é a vida, para podermos andar com a boca cheia de verdades absolutas, debitando conclusões, pondo pontos finais? Já medimos os nossos horizontes? Vão eles para além do voo de um pardal tenro? Que viagens já fizemos para perceber o outro lado, o reverso, o inverso? O que trazemos das viagens? Bugigangas? Um bronzeado? Chega-nos o quintal onde plantamos o cinismo? Achamos que somos o centro do mundo? Que temos sangue azul? Que somos iluminados, dinásticos, inquestionáveis? Que os outros são feitos de trapos? Os outros só servem para satisfazer os nossos egoísmos? Os outros são escadas, atalhos, ocasiões, oportunidades, saldos? Serão empecilhos se tiverem uma opinião diferente? Serão incapazes se não nos derem primazia? Quantos dos livros que já lemos serviram de alguma coisa, o que é que aprendemos com eles? Aprendemos o quê nos livros incontornáveis? O nome das personagens, o título, o autor? Ou conseguimos através deles chegar à essência que nos mudou para melhor? Quantas vezes mergulhamos nós na obscuridade do nosso ser para tentarmos perceber o que somos, de que somos feitos? Quantas vezes aceitamos os nossos fantasmas, as nossas fraquezas, as nossas contradições? Quantas vezes somos sinceros quando à noite pomos a consciência nos nossos colos cansados? Quantas vezes nos olhámos ao espelho e nos chamámos de patéticos? Será que não há um dia em que, finalmente, assumamos a nossa condição de quebrantáveis? Será que não há um dia em que, finalmente, deixemos de julgar as acções dos outros à luz da nossa mesquinhez? Durante dias, anos, andamos armados em espertos a distribuir poses, a conspirar, a gastar rios de palavras. Levamos uma vida a fio a olhar para o umbigo e estupidamente pensamos que estamos a fazer alguma coisa de jeito. Vivemos à superfície. O que dizemos são salpicos, farrapos sem importância nenhuma. Emproados, vamos apenas existindo na espuma dos dias. A memória colectiva não se lembrará de nós. Nada fizemos por isso.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Que segredos
deixa a noite sobre o restolho
quando dele se levanta?

domingo, 4 de julho de 2010

Uma borboleta
de asas mortas
voou.

Foi num poema
que o vento lhe fez.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

reviver o passado em ourique

Ao fim da tarde, enquanto o sol esmorecia, eles irrompiam da madrugada da memória. Eram searas de saudade à espera que a meiga foice dos sorrisos as viessem ceifar e na terra plana dos corações mais não houvesse que uma felicidade absolutamente transparente.

Ao princípio daquela noite havia um alvor de lua emocionada crescendo nos peitos. E todos, uns nómadas, outros sedentários, estavam sedentos de juntar o passado ao presente. Para perceber como chegaram até ali tantos anos depois.

Ao crepúsculo havia uma aurora de abraços e carinhos e rugas bonitas e cabelos brancos que brincavam na noite como meninos.

Havia anos que não se viam. Alguns tinham abalado e levado tudo com eles. Uns levaram o corpo, outros a família, uns tantos a necessidade, quase todos os sonhos. Mas não levaram as raízes, o calor do ninho, a matriz da cal. Outros que só cá tinham estado um, dois anos, haviam partido ébrios de paixão por este lugar onde as planícies vêm abraçar as serras.

A vida é um fado que demora, que se enleia na tristeza dos dias, é uma coisa que se adia, que nos vai afastando da essência da nossa identidade. Mas, por mais que tentemos negar, há uma evidência incontornável e simples: o ser humano precisa essencialmente de ternura, de um sorriso, de compreensão, de pertença.

Voltaram agora ao sítio onde foram felizes. Chegaram dos labirintos da existência, atravessaram abismos, experimentaram caminhos. Diferentes por fora. Mais gordos, mais carecas, mais velhos, mais grisalhos, mais cansados. Mas felizes. Às vezes, o futuro é o passado. As vozes eram muitas e vibrantes porque os corações estavam perto das bocas e os olhos brilhantes eram o dobro das vozes e cada olhar tinha dois corações unidos pelo sorriso.

Foi terna a noite. Não há muitas situações na vida que emocionalmente superem o reencontro de amigos sentados a uma mesa comendo emoções e bebendo das palavras uns dos outros.

No lusco-fusco havia uma claridade absoluta nas almas que vieram voar neste céu como se fossem pássaros que regressam felizes às primaveras das suas vidas.

Sábado, 19 de Junho de 2010. Primeiro Encontro de Antigos Alunos, Professores e Funcionários do Agrupamento Vertical de Ourique.

Nós somos o que fomos.

in Correioalentejo, 25 de Junho de 2010

terça-feira, 29 de junho de 2010

É só para dizer
que
um poema não sabe
do raciocínio das coisas

que
cada sonho se agarra
à vida como pode

que
cada procura
é uma fome na alma

que
uma linha recta
não sabe do delírio de uma curva

que
eu ainda pouco sei
de mim

terça-feira, 8 de junho de 2010

A ternura dos quarenta
é uma caixa de sapatos
com fotografias antigas lá dentro.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Poemas

Quando se está apaixonado,
os poemas são garrafas de soro
pingando
até a pessoa recuperar
os sentidos.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Os espelhos

Os espelhos são cavalos de vidro
a galope
dando coices no corpo.

domingo, 9 de maio de 2010

Gosto de gente com memória porque a memória é a espinha dorsal da existência.
Sem ela somos vermes gordos de vazio.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Andamos todos demasiado presos ao chão que pisamos.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

A espuma dos dias


Que profundidade tem a nossa vida? Ancoramos as nossas decisões no aprumo da verticalidade ou pelo contrário roçamos a superfície da vanglória? Será que somos feitos de substância ou somos apenas embrulhos luzidios? Quantas palavras que valham a pena dizemos nós durante um dia inteiro?
O que é que nós percebemos desta coisa intrincada que é a vida, para podermos andar com a boca cheia de verdades absolutas, debitando conclusões, pondo pontos finais? Já medimos os nossos horizontes? Vão eles para além do voo de um pardal tenro? Que viagens já fizemos para perceber o outro lado, o reverso, o inverso? O que trazemos das viagens? Bugigangas? Um bronzeado? Chega-nos o quintal onde plantamos o cinismo? Achamos que somos o centro do mundo? Que temos sangue azul? Que somos iluminados, dinásticos, inquestionáveis? Que os outros são feitos de trapos? Os outros só servem para satisfazer os nossos egoísmos? Os outros são escadas, atalhos, ocasiões, oportunidades, saldos? Serão empecilhos se tiverem uma opinião diferente? Serão incapazes se não nos derem primazia?
Quantos dos livros que já lemos serviram de alguma coisa, o que é que aprendemos com eles? Aprendemos o quê nos livros incontornáveis? O nome das personagens, o título, o autor? Ou conseguimos através deles chegar à essência que nos mudou para melhor?
Quantas vezes mergulhamos nós na obscuridade do nosso ser para tentarmos perceber o que somos, de que somos feitos? Quantas vezes aceitamos os nossos fantasmas, as nossas fraquezas, as nossas contradições? Quantas vezes somos sinceros quando à noite pomos a consciência nos nossos colos cansados? Quantas vezes nos olhámos ao espelho e nos chamámos de patéticos? Será que não há um dia em que, finalmente, assumamos a nossa condição de quebrantáveis? Será que não há um dia em que, finalmente, deixemos de julgar as acções dos outros à luz da nossa mesquinhez?
Durante dias, anos, andamos armados em espertos a distribuir poses, a conspirar, a gastar rios de palavras. Levamos uma vida a fio a olhar para o umbigo e estupidamente pensamos que estamos a fazer alguma coisa de jeito. Vivemos à superfície. O que dizemos são salpicos, farrapos sem importância nenhuma.
Emproados, vamos apenas existindo na espuma dos dias.
A memória colectiva não se lembrará de nós. Nada fizemos por isso.
Texto publicado no jornal CorreioAlentejo

segunda-feira, 19 de abril de 2010

O silêncio é a espuma do grito.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Fazer de conta

Faço de conta que esta folha é um céu de papel e eu uma ave pequena, de asas tenras, à procura do mecanismo das palavras e do vento.
Preparo-me à beira da folha como o pássaro se acerca do beiral do telhado: com sintomas de abismo. Os dois, eu e ele, em ensaios de vertigem e abismo, atiramo-nos. O pássaro todo. Eu apenas o sonho de voar. O pássaro suplanta o vazio, beija o firmamento com o seu bico amarelo e com o seu corpo alado faz desenhos formidáveis na abóbada celeste.
Eu caio logo a pique, quanto muito escrevo um poema na terra, porque não passo de um insignificante Ícaro de papel.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

- A hora muda esta noite.

- E nós, meu amor, em que noite mudamos nós?

segunda-feira, 5 de abril de 2010

De noite todos os amores são parvos.

quarta-feira, 31 de março de 2010

A memória das coisas boas é um frasco de perfume bom, aberto e teimoso.

terça-feira, 30 de março de 2010

A memória
dá-me tudo
o que tem,
mas não me deixa
apanhar flores de cheiro
na pele.

domingo, 28 de março de 2010

Hoje cheira-me a céu fresco e sinto que a vida já palpita na barriga da terra toda.

Os bichos recebem uma ordem para nascer. É um murmúrio que percorre os torrões, as ribeiras os ninhos. E cada um desentorpece à medida do murmúrio que traz por dentro. De um útero, de um ovo, de um casulo.

A primeira borboleta que cores terá?

terça-feira, 23 de março de 2010

Ler e contar

Nas Alcarias, freguesia da Conceição, concelho de Ourique, o tempo é quieto e sereno. Toda a aldeia é uma almofada de silêncios bons onde o horizonte vem poisar a cabeça para descansar dos ruídos do mundo. As barras das casas são molduras que guardam a memória da cal. As chaminés, de arquitectura senhorial, são obras de arte que levantaram os homens do chão e do pó das coisas banais e os aproximaram mais do firmamento. Nas Alcarias moram vinte e uma pessoas. Nas Alcarias quase todas as pessoas têm rugas que a vida lhes lavrou no rosto e nas mãos. Os mais novos saíram, foram à procura de um sentido moderno para a vida, foram ao encontro de ambições, fugiram ao destino bucólico, mas cruel das planícies e das ruínas.Os mais velhos ficaram porque a idade e a alma os agarrou à terra. Ou, se calhar, dizendo melhor, foram eles que se quiseram agarrar àquela paz. E por escolha, ou por destino, ali estão sentados à soleira das portas, moendo mágoas, enchendo a boca de ar fresco, telefonando aos filhos e aos netos, vivendo um dia de cada vez com um brilho de geada nos olhos.Mas há os que chegaram, os que não são das Alcarias, nem sequer do concelho, nem sequer do Alentejo, são os que voltaram costas à falta de espaço, ao desassossego, ao tempo inquieto e frenético.Descobriram que as manhãs nascem felizes do ventre dos restolhos e que os grilos cantam para a noite adormecer.A professora Ana Vaz veio à procura de espaço dentro de si. Quis redefinir a sua existência. Achar o vagar. Veio à procura de pardais que lhe explicassem os segredos das planuras. Deu aulas em Aljustrel e depois reformou-se. E quis continuar a viver onde os dias são maiores porque os relógios se inebriam do cheiro da hortelã da ribeira e dos poejos. A professora Ana, acabadas as aulas de Português e Francês, sentiu necessidade de retribuir a calma que aquela gente boa lhe tinha dado e então decidiu abrir uma biblioteca. Para Ler e Contar. É uma casa térrea de barras azuis imitando o céu. Quando entramos pressentimos memórias penduradas nas paredes orgulhosas de taipa, descansando no chão pisado pelos pés imensos do tempo. São duas divisões pequenas, aconchegadas, brancas, com estantes azuis prenhes de livros. Os livros são reservatórios de saber, de romances, de poemas, onde os homens e mulheres e crianças vêm beber quando querem perceber a vida. Os livros vão chegando como beijos de papel enviados pelos amigos. Façam chegar mais. Os endereços são amfortevaz@hotmail.com ou lerecontar2004@hotmail.comQuem não sabe ler, ouve contar.
São vinte e uma pessoas. Como se fossem cem, como se fossem mil, como se fosse a humanidade toda.
Texto publicado no Jornal CorreioAlentejo de 19/03/2010

sexta-feira, 19 de março de 2010

mar

Num penhasco, uma gaivota põe ovos.
É de dentro deles, disseram-me, que se solta o vento.

quarta-feira, 17 de março de 2010

livros

Os livros são reservatórios de saber, de romances, de poemas, onde os homens, mulheres e crianças vão beber quando querem perceber a vida.

domingo, 14 de março de 2010

Píndaro:
" Minha alma não exijas a imortalidade, mas esgota o campo do possível".

quarta-feira, 10 de março de 2010

A liberdade sabe a caramelo

Aprendeu a gostar de ser livre na idade em que aprendeu a gostar de caramelos. Ainda bem pequeno. E nem à pancada lhe conseguiram tirar aquele sabor da boca. Podiam tirar-lhe os caramelos, fechá-los numa gaveta, comê-los todos. Mas à sua liberdade é que já não podiam fazer nada. A liberdade é uma paixão eterna. A liberdade não se agarra só aos dentes como os caramelos. A liberdade agarra-se a tudo em nós. Entranha-se. Encharca-nos de inquietação e sonhos. Mete-se no sangue, nos pulmões, no mais ínfimo das células, voa no oxigénio, faz ninho no coração e procria. Um a um, pequenos actos de liberdade e respeito saem-nos do peito e da boca, dia após dia, no relacionamento com a vida e com os outros. Sem nada impor, arredar ou ultrapassar. Opinando, escolhendo as palavras melhores que os dicionários têm, voando sobre a lama, evitando as armadilhas, contornando os obstáculos, não dizendo cobras nem lagartos nem destilando veneno. Sem preconceitos, sem tácticas. Uma vez desembrulhada e saboreada, a liberdade aloja-se no cérebro e muda-nos. Põe-nos de pé. Mesmo que sejamos franzinos, desengraçados, demasiado comuns, a liberdade dá-nos as palavras certas para procuramos o nosso caminho. Ser livre é ter uma bússola nos olhos, mantimentos para a viagem toda, é ver, ouvir e ler, é ter inquietação, é dobrar horizontes, é não ter medo. Que teimoso é o moço, queixavam-se a mãe, a avó e os tios. Tem a mania que é esperto, diziam os maiores, ao mesmo tempo que lhe davam umas chapadas por causa de mais um não quando era suposto dizer sim. É demasiado distraído, comentava o professor sempre que ele não respeitava o tema da redacção. Vais dar muitos tombos na vida, exclamavam os amigos sempre que ele não aceitava o estado parado e confortável das coisas. Sempre detestou gaiolas de pássaros, aquários, trelas de cães, jardins zoológicos. Aprendeu a ouvir os outros, aprendeu a discordar dos outros, a respeitar a diferença dos outros, a aceitar que os outros podem não gostar dele, podem até detestá-lo, odiá-lo, mas que isso é um direito que lhes assiste e por isso não lhes quer mal. Compreendeu que o mundo é feito de dialéctica, de oposição, de contraste. Por ser um homem livre, percebeu que deve ser magnânime em vez de mesquinho, dialogante em vez de vingativo, sincero em vez de hipócrita. Porque é livre, aceita que o interpretem, o leiam, o entendam, o avaliem de forma acintosa e velhaca. E aceita-o porque sabe que a liberdade e a dignidade são provas de resistência, coisa de anos a fio, um tempo contínuo de respeito e serenidade. Não tem de responder a banalidades, frustrações, mau perder, preconceitos.
É claro que por ter emoções não fica imune, mas prefere guardar essas mágoas para memória futura.

sábado, 6 de março de 2010

Tem chovido tanto!
As andorinhas estão à espera que as chamem.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Uma borboleta de asas mortas
voou.

Foi num poema que o vento lhe fez.

terça-feira, 2 de março de 2010

Asas de cabedal

Um homem não consegue entender a relação umbilical que uma mulher estabelece com a sua mala. Ao vê-la entrar numa loja, é-lhe impossível, talvez devido a razões genéticas, medir os níveis de dopamina, imaginar o enfatuamento, compreender os mecanismos neurológicos que atravessam o cérebro da mulher e a deixam extasiada à beira das prateleiras.E são poucos os homens que se atrevem a invadir aquele mundo místico, principalmente se for em época de saldos. A maioria fica à entrada como ateus à porta de uma igreja.Uma mala de mão talvez configure a maior das diferenças existenciais entre homens e mulheres. Cava um abismo, traça uma impossibilidade de entendimento. Para um homem, nada é mais confrangedor do que, num qualquer centro comercial, segurar a mala da esposa enquanto esta vai experimentar um vestido. São minutos absolutamente aterradores. Como não sabe como lhe há-de segurar, agarra-a como se agarra num saco plástico com asas. Aquilo não se fez para o seu corpo e rezando para que não passe ninguém conhecido, o objecto cai-lhe sem graça das mãos.Perante uma mala de mulher, um homem nada acha, confunde-se, é um ser perdido. Tacteia, apalpa, mexe, afasta, mas os olhos não vêem, os dedos nada tocam, seja um isqueiro, uma chave, uma caneta. Mergulhar as mãos no conteúdo da mala de uma mulher é como mergulhar num poço escuro. É preciso vir à tona várias vezes e gritar que não se encontra o que se procura. Está aí junto aos lenços de papel, diz ela impaciente. Os homens são todos iguais, não sabem procurar o que não se vê logo, seja em malas, seja em corações. São ambos labirintos onde os homens se perdem, aflitos e tontos. O mais fácil seria despejar tudo para cima de uma mesa, apontar um candeeiro e tirar as indefinições da penumbra. As mulheres sabem viver dentro das malas, os homens não. Os homens trazem tudo nos bolsos das calças porque têm medo de o trazer junto ao peito.Quando uma mulher compra uma mala, que contas faz ela à vida para comprar esta e não aquela? Que raciocínio ou que emoção a leva a optar por uma maior ou por uma mais pequena, com mais ou menos bolsas? É uma questão de estilo ou de existência? A mala de uma mulher é um segredo guardado com um fecho de correr. É um peso que ela traz aos ombros a combinar com os sapatos, a verdadeira cobertura para a nudez, um mistério com fivelas, um kit de sobrevivência urbana.A mala de uma mulher é o resumo da sua vida. A sua síntese. O rímel. A fotografia dos filhos. A fotografia dos cães. Às vezes do marido. O telemóvel. Cansaço. As chaves de casa. Um livro. O batom. A carteira. Um poema gasto. Moedas para o carrinho do supermercado. A lista das compras.
A mala de uma mulher é o seu coração com asas de cabedal.

Texto publicado no Jornal CorreioAlentejo

domingo, 28 de fevereiro de 2010

um homem apaixonado
por uma mulher feita
gosta de vinho tinto.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

O princípio da mulher é o sangue.
É ele que parte o lacre da infância.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

A amizade

Na voragem da vida, nas esquinas das emoções, nessas encruzilhadas que se formam no pensamento, perdemos amigos. Mas para sermos mais precisos e aliviarmos o peso da perda, é preciso dizer que não os perdemos verdadeiramente. Um verdadeiro amigo nunca se perde. Quanto muito podemos não o ver, não lhe telefonar, com ele não trocar opiniões. Mas sabemos que ele existe, que ele está lá quando precisarmos dele. Porque se o amigo tiver sido feito com fermento e massa de olhos brilhantes, de abraços, de lágrimas, de palavras suaves, de respeito, de confiança, de compreensão, a amizade sobrevive sempre. Pode estar moribunda, presa em folhas de papel amareladas pelo tempo, enclausurada num grito que não se deu, calada em elogios adiados, enterrada em memórias movediças, pode ter sido esmagada por um conflito que não se soube resolver, enleada em rumores, assombrada por fantasmas que alguém soltou como cães raivosos que nos saíram ao caminho e nos morderam o coração. Mas não está morta. É uma pétala que, basta querer, rasga o cimento da hipocrisia, é um pássaro que com asas de veludo rebenta a gaiola do cinismo, é uma borboleta frágil que destrói o interesse pontual e estratégico. É um sopro de vida, uma tulipa no deserto, uma chama a arder dentro dum cubo de gelo, uma verdade perdida no labirinto da mentira, uma corda para sair do poço, uma almofada fofa sobre um precipício. A amizade é coisa una feita por dois. Cada um pode ter seguido por uma estrada diferente, às vezes até em sentidos opostos, já não se escrevem, já nem ao menos sabem o endereço um do outro, esqueceram a morada, esqueceram o rosto, esqueceram os risos, esqueceram o calor das palavras, esqueceram os cafés, as noites, a poesia, os medos que contavam um ao outro, os sonhos que diziam um ao outro, esqueceram as fraquezas que mostravam um ao outro, a força que davam um ao outro. Já não brindam à saúde de cada um e agora são dois copos partidos, ansiosamente procurando saber de quem é a culpa de se terem transformado em estilhaços.A amizade é humana, e por isso a amizade tem arrufos. A amizade quer a atenção toda. A amizade é de cristal. É uma bola de sabão. A amizade é uma pomba branca zangada. A amizade hiberna. A amizade tem fases de armário. A amizade faz birras. A amizade é uma cigarra teimosa.A amizade, por saber que tem amigos, e que eles a perdoam, esquece-se deles. Mas felizmente, a amizade tem raízes que quando se cansam do vazio retornam sempre à terra que as viu nascer. A amizade é um boomerang. É um vento morno que volta. Um Verão que aquece. Fogo que arde e se vê na cara. A amizade é um pássaro que regressa ao ninho quando tem frio. A amizade nunca morre porque tem dois corações.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

As mulheres são enciclopédias, tratados, teses, teoremas.
E os homens são dicionários de bolso.
Só dizem as coisas básicas.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

A paixão é
um salto sobre o abismo
de olhos abertos
comendo uma talhada de lua.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

A teia

A vida é uma teia de interesses. O correr dos dias é uma enxurrada de decisões, uma amálgama de emoções que nos fazem agarrar a qualquer coisa para não irmos ao fundo. Tanta dúvida, tanta encruzilhada, tanta opção, tanta inquietação.Para nos mantermos à tona subimos à mais pequena pedra, abraçamo-nos ao vento, pegamos em pontas soltas, deitamo-nos em qualquer colo, deslumbramo-nos com qualquer luz.Temos medo. Todos temos medo de falhar. De desaproveitar a existência, de perder o pé, de ficar para trás, esquecidos, pobres, indiferentes, entorpecidos, pouco mais que números, motivo de gozo, desilusão de pais, vergonha de filhos. Não queremos ficar enterrados em mediania, incapazes de um golpe de asa, entregues à rotina, submissos como cães gordos, dando ao rabo, rosnando em surdina para os donos não nos ouvirem.Não admitimos ficar de fora, não integrar a vanguarda, não sermos reluzentes, crepitantes, interessantes, válidos, modernos, memoráveis.E para darmos conta de tudo isto temos o raciocínio. Ou o instinto de sobrevivência que em situações de aflição são uma e a mesma coisa.Alguns de nós descobrem-se a si mesmos, projectam-se, avaliam-se, buscam horizontes, não têm raiva nas gengivas, lêem, respeitam a diferença, propõem, debatem, sentem ternura, sentem vergonha, calam-se quando o silêncio se levanta, falam sem cinismo, usam as mesmas palavras na cara e nas costas, têm almas de veludo branco, dormem contentes com as suas consciências.E sabem perder porque sabem que perder é apenas um sol-posto. De manhã há mais.E há outros de nós que perderam o equilíbrio, calculam as perdas e os ganhos, as mais valias, os proveitos. Fazem contas, são usurários, maquiavélicos. Toldados pela gula, colam-se como lapas, agarram-se como carraças, ferram o dente e não largam. São os guerrilheiros das nossas ruas, dos nossos cafés, do nosso mundo pequeno e vil.São aranhas numa teia. Esperam por homens bons como quem espera por moscas ingénuas. Para os apanharem desprevenidos e com um sorriso nas suas caras ruins os usarem e os deitarem para o lado, secos e gastos.Para os enlearem, para os prenderem, para os sugarem, para lhes arrancarem as suas asas, para lhes taparem os olhos, as bocas, para lhe roubarem a sua liberdade, os seus sonhos, as ilusões, as palavras bonitas, para os comerem com as suas naturezas más. Para dizerem mal nos seus conluios de aranhas perdidas.Os homens são dicionários de antónimos. Zangados com o seu significado, pouco ou muito ou nenhum, rasgam o papel que os sustenta. Não se admitem. Não se suportam. São vespas furiosas dentro de uma garrafa de vidro. A existência é uma eterna garrafa de vidro fechada. Um espelho imenso que reflecte sombras, terrores e glórias vãs a que só as campas vêm dar descanso.
A vida é uma teia.
Voemos então por cima dela.
Abalemos com os pássaros.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

O presente, esse momento de estar a ser, arde como um cigarro que se fuma ao frio.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Um homem é um rio parvo. A água só o atrapalha.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

para chegar à tua voz
e aos lábios que a fazem
diz-me,

quanto tempo
é tanto tempo?

sábado, 13 de fevereiro de 2010

asas

as asas das gaivotas
são carne do meu desgosto
por irem tão altas.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

no mar

no mar vi a eternidade.

oferecia o vento às asas
de uma gaivota.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

mala de mulher

A mala de uma mulher
é o seu coração
confuso
com asas de cabedal.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Alcançar

Não aceita a ideia de viver um dia de cada vez.É pouco, não suporta a inércia do momento. Nem os ponteiros do relógio, esses escravos do tempo, nela se detêm, quanto mais ele que é uma inquietação pegada! Precisa de se precipitar, antecipar, prever, deduzir. Precisa de esventrar os factos e desejar outra coisa qualquer. Tem sempre outra fome que o presente não mata.(O presente é uma bolacha de água e sal.)Dentro deste homem nada existe. Só existirá. Lá à frente, no futuro, é que ele se encontra. Mas o raio do devir vai montado num caracol e quando lá chega já leva o momento montado no dorso.O homem é um rato numa roda. Planos? Isso é para gente com paciência e agendas de bolso que sabe que o sol também tem de dormir e que há um tempo para as borboletas e outro para as castanhas assadas. Quem espera nunca alcança. Esperar é ter ferrugem na alma. Esperar é entreter-se no caminho. Esperar é estar sentado. Esperar não é mais do que o destino escrito com outras letras. A pressa é muita. Tem medo de não ter tempo. Tem medo de ficar a meio. Mas depois, feita a viagem, nada do que encontra lhe chega quando lá chega. No fundo o que conta é a partida e talvez um bocado do caminho. O resto é chegar lá. E chegar é o fim, é o desejo saciado, a barriga cheia, a tarefa cumprida, o sonho realizado, o compromisso honrado, o processo concluído. Mas para que serve a conclusão?Chegar é apenas estar. Não é ser. Ser é questionar, é duvidar, é não querer estar apenas por estar. Ser é ir à procura de outro estar. Estar é um pássaro sem asas. Não tem coração, tem sim um motor movido a ansiedade dentro do peito.Esperar não é uma virtude. Esperar é uma fraqueza de espírito.Esperar é uma osga parada. Esperar é de vez em quando comer um mosquito. Esperar é uma cana de pesca. Esperar é ocasionalmente apanhar um peixe.Esperar é plantar. Esperar é aguardar pela chegada das couves lombarda.Esperar é uma fila. Esperar é um consultório de médico. Um sinal vermelho. Um atraso. Uma submissão. Uma virgindade até ao casamento. Uma carta que não chega. Um beijo adiado. Um sono que não vem. Uma hora que ainda falta. Esperar é às vezes já não haver lugar.Quer alcançar quando quer e lhe apetece. E não há realidade que o detenha, nem razão que o pare. Apenas o tempo se lhe põe à frente. Apenas o tempo é capaz de o guerrear. É aliás a única entidade que o tenta prender. Mas o homem disfarça-se de poesia e loucura para enganar o tempo. Tem frio no Verão, uiva no quarto minguante, nada nos desertos, rasteja no céu, põe fogo na febre, colhe maçãs em Novembro, adianta os relógios de todas as torres. Não admite que tempo é uma escada que se sobe degrau a degrau, pé ante pé, dia após dia. E escolhe subir o futuro por uma corda, rasgar as mãos, perder a cor do cabelo para chegar primeiro e envelhecer antes de tempo. Este desassossego é tempo perdido, pois o tempo é pastor de um rebanho quieto e o relógio é o seu cão.

Texto publicado no jornal Correioalentejo.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

farol

Numa aflição de breu
um farol grita luz,
espera pelo dia
e depois

sossega.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

sombra de penas

passas pela minha vida
rasando o meu entardecer
e sobre o crepúsculo vais deixando
um vestígio de asas libertas,
uma sombra de penas,
um eco de luz castanha.

que te hei-de eu dizer de mim
se os pássaros têm olhos perfeitos
quando voam?