quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Corações

Há corações que logo à primeira cerveja, ajudados pelo ar quente do cigarro, sobem até perto da boca como se fossem balões vermelho-sangue atados a uma veia de poeta, esvoaçando no céu da conversa.
São corações que não respeitam a gravidade. Nunca caem aos pés, antes pelo contrário sobem sempre porque têm um gás alado e inebriante que se extrai das raízes das paixões maduras. (Apenas alguns homens e mulheres sabem onde o podem encontrar).
Têm almas de cigarra, batem desalmadamente na ponta da língua, coisas vermelho-sangue voando felizes no céu-da-boca.
Não escondem, não se escondem, saltam para a mão para todos verem como batem e como caminham felizes pelas artérias da memória. Mostram a aorta que às vezes irriga tudo de prazer e outras vezes os deixa sem pinga de sangue. E também mostram, bem ao perto e ao pormenor, as cicatrizes dos desgostos, os sítios onde a setas ficaram cravadas, as arritmias provocadas pela electricidade dos olhos, os glóbulos brancos dos lençóis em desalinho, os vermelhos dos olhos vermelhos de choro, as capilares que levam a mágoa na sua corrente, uma veia que numas asas e bico de colibri se soltou da pele que é a prisão das veias e provou o sabor daqueles lábios vermelho-carne, o miocárdio que é o responsável pelo desejo maior.
Há corações que fazem duma conversa uma passadeira de uma prova de esforço e não param até que no tampo da mesa se sintam as batidas cardíacas por minuto, na montra do café estejam expostos os Raios-X e o televisor seja um monitor de electrocardiogramas.
Há corações ao alto.

E há corações mudos. Aprendizes da cartilha do silêncio. São relógios de ponteiros servis dando horas certas, bombeando rotina, picando o ponto. Podiam ter sido relógios de cozinha ou de sala, calhou a serem relógios de peito com mecanismos de sangue que não aquece nem arrefece.
Há corações que são funcionários públicos empregados no escritório da vida. Têm hábitos das nove às cinco e trazem comida de casa. De resto só comem em casa.
A maior parte das vezes estão sentados muito direitos, agrafados à burocracia do ritmo cardíaco. Assinam os ofícios das frases feitas e da normal distribuição do oxigénio e nada percebem da poesia das pulsações exageradas, dos calafrios e das tensões altas.
Há corações que são pedras frias dentro de poços fundos.
O carne do corpo as tábuas do caixão. Eles o morto.
Têm alma de formigas, vão em carreirinha, sobrevivendo. Não se lhes conhece um desvio no aparelho sanguíneo, um aumento de pressão arterial, nunca assomaram à boca, muito menos saltaram para a mão. Ali ficam na gaiola do peito, pássaros quedos, uma vida inteira comendo alpista e bebendo água da torneira.
Para eles a adrenalina é um mito. Apenas ronronam de vez em quando como gatos preguiçosos deitados num cesto com uma coleira posta.
Não palpitam, não aceleram, nem inventam outros aparelhos circulatórios.
São meros pace-makers.

Numa vida a dois pode haver um de cada qualidade.

3 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. O CORAÇÂO!!!
    Aquela pequena e grande máquina que comanda a VIDA!!!
    Sem ele... este mundinho seria bem mais cinzento!!!
    pumpum, pumpum, pumpum...
    Que mantenhas sempre esse teu coração bem saudável...
    Para assim continuares a deleitar-nos com estas tuas palavras, nem sempre perdidas!!! :)
    S.G.

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  3. (...)
    Que estranha forma de vida
    Tem este meu coração
    Vive de vida perdida
    Quem lhe daria o condão
    Que estranha forma de vida

    Coração Independente
    Coração que não comando
    Vives perdido entre a gente
    Teimosamente sangrado
    Coração independente

    Eu não te acompanho mais
    Para deixa de bater
    Se não sabes onde vais
    Porque teimas em correr
    Eu não te acompanho mais
    Se não sabes onde vais
    Para deixa de bater
    Eu não te acompanho mais

    Letra e música: Alfredo Duarte e Amália Rodrigues

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