sábado, 31 de janeiro de 2009

Desejar
é tricotar o tempo
à espera da medida
do teu corpo

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Vírgula

A minha escola não começou com a compra da mala, dos cadernos, dos lápis, da borracha. Nem sequer começou com o abecedário, a junção das sílabas, dois mais dois, sujeito, verbo e complemento. A minha escola começou antes da matrícula, antes do livro de leitura, antes do mundo ter sequer seis anos.
A minha escola começou com uma Vírgula. Uma Vírgula pequenina.
Perto de minha casa, numa garagem, ao fim da tarde, Dona Catarina dava explicações aos alunos da Escola Primária. Lá se faziam os deveres: as contas, os problemas, as redacções. Apurava-se a caligrafia, decorriam ensaios do grupo coral da tabuada, ecoavam ditados sem réguas que os castigassem, aperfeiçoavam-se cópias, limavam-se feitios distraídos, substituíam-se ideias de ninhos e piões, decoravam-se rios e reis, aprendia-se a pátria e o ultramar. E a meio, às cinco e meia, comia-se pão com manteiga barrada com açúcar amarelo e bebia-se café com leite.
No tempo em que o marido da Dona Catarina tirava o carro da garagem às quatro horas da tarde para ser montada a sala de aula com quadro negro e tudo, eu ainda não andava na escola. Eu ia porque queria ter uma bata branca e lápis de cor e não havia televisão.
Sentava-me numa cadeira ao lado da mestre. Era o assistente do giz, o operário do apagador, o arrumador de cadernos, o pastor do relógio, o aparador de lápis, o encarregado da Vírgula.
Era essa a parte que eu mais gostava. Também era bom cantar a canção do dois, pintar a bandeira de Portugal e copiar por cima de papel vegetal, mas sem dúvida do que eu mais gostava era dos ditados. Por causa da Vírgula. Quando o som do giz branco comia o silêncio do quadro negro entoando a palavra Ditado, os alunos da quarta classe abriam os cadernos e eu ficava feliz. E a professora começava a ditar: Parábola dos sete vimes. Era uma vez um pai que tinha sete filhos. Quando estava para morrer vírgula. E aqui, precisamente aqui na vírgula, vinda da porta que dava para o quintal, uma cadela pequenina e franzina entrava em cena e ladrava três vezes. E Dona Catarina, dona da Vírgula e do ditado todo, mandava-a embora e lá ia eu, armado em pajem da pontuação, acompanhá-la até aos seus aposentos. E a cada breve respiração do complemento, que é como quem diz a cada vírgula, do lado do quintal dos diospiros maduros, lá vinha outra vez a Vírgula interromper a sintaxe do discurso. E nós ríamos todos muito. Que bom que era que uma frase não fosse só letras de ponta a ponta, pois assim as palavras vinham montadas em quatro patas e abanavam o rabo quando nos viam!
Mas um dia às quatro da tarde o carro não saiu da garagem. Eu esperei até ser noite, mas os motores do carro e da vida toda não pegaram. Ficaram quedos, mudos. Morreram como uma avó querida morre, de repente, durante o sono e nos deixa enterrados em solidão.
O pó veio e sentou-se nas cadeiras. O mofo ocupou as mesas todas. O tempo é que ditou as regras. O silêncio ouviu e calou - o silêncio não tem vírgulas para se poder rir. O giz amarelou. O açúcar amarelo amargou. O pão secou. O café, já sem leite, morreu de tanto luto. A data gelou no quadro. O relógio baixou os braços. Os diospiros gretaram de tanto doce. A porta prendeu o quintal. E a tabuada era apenas um multiplicador de fantasmas calados e errantes. Noves fora nada. Dona Catarina fechou a escola.
As razões sabia-as a minha mãe que só me disse que ia a um funeral. E que ficasse com a vizinha.
Eram quatro horas da tarde. Comecei a ditar. Em voz alta. O texto começava com uma vírgula.
Ainda hoje ouço os textos a ladrar três vezes a meio das frases.
Ponto final parágrafo. A Vírgula morreu.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Corações

Há corações que logo à primeira cerveja, ajudados pelo ar quente do cigarro, sobem até perto da boca como se fossem balões vermelho-sangue atados a uma veia de poeta, esvoaçando no céu da conversa.
São corações que não respeitam a gravidade. Nunca caem aos pés, antes pelo contrário sobem sempre porque têm um gás alado e inebriante que se extrai das raízes das paixões maduras. (Apenas alguns homens e mulheres sabem onde o podem encontrar).
Têm almas de cigarra, batem desalmadamente na ponta da língua, coisas vermelho-sangue voando felizes no céu-da-boca.
Não escondem, não se escondem, saltam para a mão para todos verem como batem e como caminham felizes pelas artérias da memória. Mostram a aorta que às vezes irriga tudo de prazer e outras vezes os deixa sem pinga de sangue. E também mostram, bem ao perto e ao pormenor, as cicatrizes dos desgostos, os sítios onde a setas ficaram cravadas, as arritmias provocadas pela electricidade dos olhos, os glóbulos brancos dos lençóis em desalinho, os vermelhos dos olhos vermelhos de choro, as capilares que levam a mágoa na sua corrente, uma veia que numas asas e bico de colibri se soltou da pele que é a prisão das veias e provou o sabor daqueles lábios vermelho-carne, o miocárdio que é o responsável pelo desejo maior.
Há corações que fazem duma conversa uma passadeira de uma prova de esforço e não param até que no tampo da mesa se sintam as batidas cardíacas por minuto, na montra do café estejam expostos os Raios-X e o televisor seja um monitor de electrocardiogramas.
Há corações ao alto.

E há corações mudos. Aprendizes da cartilha do silêncio. São relógios de ponteiros servis dando horas certas, bombeando rotina, picando o ponto. Podiam ter sido relógios de cozinha ou de sala, calhou a serem relógios de peito com mecanismos de sangue que não aquece nem arrefece.
Há corações que são funcionários públicos empregados no escritório da vida. Têm hábitos das nove às cinco e trazem comida de casa. De resto só comem em casa.
A maior parte das vezes estão sentados muito direitos, agrafados à burocracia do ritmo cardíaco. Assinam os ofícios das frases feitas e da normal distribuição do oxigénio e nada percebem da poesia das pulsações exageradas, dos calafrios e das tensões altas.
Há corações que são pedras frias dentro de poços fundos.
O carne do corpo as tábuas do caixão. Eles o morto.
Têm alma de formigas, vão em carreirinha, sobrevivendo. Não se lhes conhece um desvio no aparelho sanguíneo, um aumento de pressão arterial, nunca assomaram à boca, muito menos saltaram para a mão. Ali ficam na gaiola do peito, pássaros quedos, uma vida inteira comendo alpista e bebendo água da torneira.
Para eles a adrenalina é um mito. Apenas ronronam de vez em quando como gatos preguiçosos deitados num cesto com uma coleira posta.
Não palpitam, não aceleram, nem inventam outros aparelhos circulatórios.
São meros pace-makers.

Numa vida a dois pode haver um de cada qualidade.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Palavras Perdidas

Perdeu palavras pelo caminho. Dantes sabia mais, tinha aliás sempre as mãos e as bochechas cheias de palavras. Dessas que se vestem de neblina e de opacidade e os dicionários trazem em segundo ou terceiro ou último lugar para definir os mesmos sentidos, mas que por virem nesses lugares secundários são menos geométricas, menos gramaticais e mais etéreas, mais libertinas.
Tinha a boca sempre cheia de palavras que ninguém queria dizer. E essas que ninguém quer dizer são as que ficam para lá das reticências, dos pontos de interrogação, dos etc. e dos pontos finais. E ele, com a sua língua afiada nos vocábulos cremosos, ia além da moral e rasgava as pontuações que são as causadoras de todos os silêncios cobardes.
Houve um tempo em que nada ficava por exclamar, nenhuma raiva, nenhuma ternura morria com falta de ar, sabia desatar todos os nós onde as gargantas se enforcam, aquecia o frio do estômago, descobria sempre um significado para todas as coisas. Tudo tinha voz, um clamor, uma razão, uma linguagem, um troar, uma caixa de sons feitos pelos dentes. Nenhum sentimento ficava por mostrar, nenhum sentido ficava invertebrado, nenhum brado ficava por dar, nenhuma paixão por gritar, nenhum ai ficava no peito. As palavras eram tantas que pareciam bandos de estorninhos pondo oralidade nos céus.
Tinha os bolsos sempre cheios de palavras estranhas. Eram pedaços de vidas que se desprendiam das bocas, vocábulos caídos de um poema dolente, sons escorraçados, letras trucidadas pelo vazio de uma relação entre um homem e uma mulher, termos vadios, ideias sem eira nem beira. E como quem tira um pássaro de uma gaiola ele tirava as desusadas palavras dos bolsos e punha-as a cantar ao sol.
Mas agora já não inventa mundos de algodão com pés de cereja, já não escreve poemas meio redondos, meio erectos. Agora só já faz ditados. O alfabeto é um bocado de pão às secas, uma receita de cozinha que ele segue à risca para lhe alimentar a existência e para o manter vivo e velho.
Perdeu as palavras pelo caminho como quem perde o cabelo. Uma a uma, um a um. Sem ele dar por isso caem a seus pés. Um dia e outro, uma noite e outra. Uma palavra que se esquece, outra que lhe queima os lábios, outra enforcada na garganta, outra morta, assassinada, apodrecendo dentes e gengivas, outra presa na malha do tempo. Quando deita as mãos à cabeça já não tem lá nada. Nem cabelo nem palavras. Encontra apenas um silêncio calvo a cobrir-lhe a memória. Os papéis que escreveu são túmulos de cinza, morcegos mortos colados à folha.
É como se as palavras abandonassem as asas dos estorninhos e se tivessem transformado em lesmas que vão deixando uma omissão viscosa por onde passam.
Ele é uma lesma gorda que se contenta com a primeira palavra do dicionário. Já lhe chega o sentido básico.
Já nada diz, rasteja, cala-se afogado em ranho e moleza.
Está perdido num labirinto. Precisa urgentemente de um fio de Ariadne.