quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Alcançar

Não aceita a ideia de viver um dia de cada vez.É pouco, não suporta a inércia do momento. Nem os ponteiros do relógio, esses escravos do tempo, nela se detêm, quanto mais ele que é uma inquietação pegada! Precisa de se precipitar, antecipar, prever, deduzir. Precisa de esventrar os factos e desejar outra coisa qualquer. Tem sempre outra fome que o presente não mata.(O presente é uma bolacha de água e sal.)Dentro deste homem nada existe. Só existirá. Lá à frente, no futuro, é que ele se encontra. Mas o raio do devir vai montado num caracol e quando lá chega já leva o momento montado no dorso.O homem é um rato numa roda. Planos? Isso é para gente com paciência e agendas de bolso que sabe que o sol também tem de dormir e que há um tempo para as borboletas e outro para as castanhas assadas. Quem espera nunca alcança. Esperar é ter ferrugem na alma. Esperar é entreter-se no caminho. Esperar é estar sentado. Esperar não é mais do que o destino escrito com outras letras. A pressa é muita. Tem medo de não ter tempo. Tem medo de ficar a meio. Mas depois, feita a viagem, nada do que encontra lhe chega quando lá chega. No fundo o que conta é a partida e talvez um bocado do caminho. O resto é chegar lá. E chegar é o fim, é o desejo saciado, a barriga cheia, a tarefa cumprida, o sonho realizado, o compromisso honrado, o processo concluído. Mas para que serve a conclusão?Chegar é apenas estar. Não é ser. Ser é questionar, é duvidar, é não querer estar apenas por estar. Ser é ir à procura de outro estar. Estar é um pássaro sem asas. Não tem coração, tem sim um motor movido a ansiedade dentro do peito.Esperar não é uma virtude. Esperar é uma fraqueza de espírito.Esperar é uma osga parada. Esperar é de vez em quando comer um mosquito. Esperar é uma cana de pesca. Esperar é ocasionalmente apanhar um peixe.Esperar é plantar. Esperar é aguardar pela chegada das couves lombarda.Esperar é uma fila. Esperar é um consultório de médico. Um sinal vermelho. Um atraso. Uma submissão. Uma virgindade até ao casamento. Uma carta que não chega. Um beijo adiado. Um sono que não vem. Uma hora que ainda falta. Esperar é às vezes já não haver lugar.Quer alcançar quando quer e lhe apetece. E não há realidade que o detenha, nem razão que o pare. Apenas o tempo se lhe põe à frente. Apenas o tempo é capaz de o guerrear. É aliás a única entidade que o tenta prender. Mas o homem disfarça-se de poesia e loucura para enganar o tempo. Tem frio no Verão, uiva no quarto minguante, nada nos desertos, rasteja no céu, põe fogo na febre, colhe maçãs em Novembro, adianta os relógios de todas as torres. Não admite que tempo é uma escada que se sobe degrau a degrau, pé ante pé, dia após dia. E escolhe subir o futuro por uma corda, rasgar as mãos, perder a cor do cabelo para chegar primeiro e envelhecer antes de tempo. Este desassossego é tempo perdido, pois o tempo é pastor de um rebanho quieto e o relógio é o seu cão.

Texto publicado no jornal Correioalentejo.

2 comentários:

  1. Caro Vitor,
    Quanto mais te leio mais te sei. Adoro esse caldeirão onde fazes com as palavras a alquimia das mesmas. A tua escrita é um bálsamo que se me cola na pele e é ao mesmo tempo o estimulo inspirativo para muitas das minhas deambulações.
    Os grandes, os lá de cima ainda não te descobriram e se calhar ainda bem! Às vezes penso que és como uma velha taberna, com os seus petiscos sazonais,com os seus minusculos copinhos, com as suas rifas de facas, com as mesmas estórias repetidas a cada ano que passa, tantas como as camadas de cal que com o passar dos anos engrossam as paredes e quase lhe conferem vida. E um dia aparece um gajo de Lisboa e fode tudo, dá a volta ao taberneiro e nós ficamos orfãos do petisco e da vida que repartimos.
    É assim que penso em ti agora...se calhar daqui a pouco já tenho outro slide, para já fica este!
    Que sejas sempre assim. Que repartas o que escreves, como quem reparte pão.
    Abraço

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  2. Caro Napoleão, apraz-me que gostes do que escrevo.
    Sendo a escrita um acto perfeitamente egoísta, há sempre lugar à partilha desde que do lado do leitor não haja só silêncio.

    Um abraço.
    Aguardo ansiosamente pelo copo de vinho e pela côida de pão.

    Vítor Encarnação

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