quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Adeus

Quando eles se conheceram, estava calor e a noite tinha um decote grande que deixava ver as estrelas todas.E estava quente o banco de pedra onde ela, com olhos inquietos de ter chegado agora à vila, se sentava. Agitava-se como se fosse uma pequenina brisa perdida do resto do rebanho do tempo, e os pés, extremidades de carne de uma mini-saia de ganga, eram duas âncoras espetadas no cimento do jardim. Aqueles olhos não eram dali e aquele rosto nunca morara naquelas ruas.Ela era jovem, daquela idade em que o tempo põe os corpos no seu molde e os arredonda e lhes dá uma textura de maçã. E não nos esqueçamos que era Verão e que a noite não conseguia arrefecer o calor que o dia lhe deixara. E ele, fazedor de palavras belas e domador de temperaturas, foi ter com ela e levou-lhe palavras frescas nos lábios. E com elas, quando as disse entre dentes, borrifou-lhe o rosto, o pescoço, os ombros, os joelhos e os olhos estrangeiros. E ela arrepiou-se com aquela mistura espessa de ar e de letras. Eram adjectivos e verbos que ele lhe tinha dito e que voavam já indomáveis no céu do seu coração.Dali a nada, os olhos dele e os olhos dela eram já quatro pássaros castanhos poisados num fio de espanto. Tinham acabado de se conhecer, mas só a vergonha e a esplanada cheia lhes punha algemas nas mãos, açaimes nos lábios e nas línguas. Nenhum deles tinha sentido nada assim. As suas peles só tinham sido objecto de carícias da família, beijos de aniversário, de boa noite, de até amanhã, de despedida, nunca de desejo, nunca abaixo do queixo. Mas agora nascia ali um incontrolável apetite vertical de saliva e suor. Para quem não sabe, estas coisas acontecem assim de repente, na noite, por causa de uma aliança entre o brilho da lua e o silêncio das osgas.Assim viveram durante anos, achando alimento no estarem juntos, lembrando o passado nas linhas da testa, vivendo o presente na água das bocas, preparando o futuro na fundura dos olhos. As noites eram empecilhos, necessidades parvas de dormir inventadas por quem não sabe o que é estar apaixonado. A escola um desperdício de horas passadas a conhecer nada quando já se tem tudo. Os dois eram um par de pleonasmos, um casal de redundâncias. Se um dava um ai, logo o outro fazia eco.Respiravam-se um ao outro, pois senão morriam.Mas um dia, um deles, não se sabe se terá sido ela ou se terá sido ele, deixou cair o olhar para o chão porque descobriu que a paixão era apenas um urso de peluche que dormia aconchegado entre quatro lábios. E ele, ou ela, não sabemos, aflito, quis apanhar o olhar e o peluche com as mãos, mas o outro já não deixou. Já não era capaz de mais. Estavam moídos, moribundos. A paixão matara-os para o mundo. Cada um tinha-se tornado o espelho do outro e o espelho partira-se com tanto beijo e tanta obsessão.Um destes dias, um deles, não digo se foi ele ou ela, levava o poema “Adeus” de Eugénio de Andrade debaixo do braço.
Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,e o que nos ficou não chegapara afastar o frio de quatro paredes.Gastámos tudo menos o silêncio. (…)
P.S. Você, que é ele ou ela, vá acabar de ler o poema.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Cansadas do dia,
as palavras descansam
nos braços ternos da noite.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

A espuma dos dias

Que profundidade tem a nossa vida? Ancoramos as nossas decisões no aprumo da verticalidade ou pelo contrário roçamos a superfície da vanglória? Será que somos feitos de substância ou somos apenas embrulhos luzidios? Quantas palavras que valham a pena dizemos nós durante um dia inteiro? O que é que nós percebemos desta coisa intrincada que é a vida, para podermos andar com a boca cheia de verdades absolutas, debitando conclusões, pondo pontos finais? Já medimos os nossos horizontes? Vão eles para além do voo de um pardal tenro? Que viagens já fizemos para perceber o outro lado, o reverso, o inverso? O que trazemos das viagens? Bugigangas? Um bronzeado? Chega-nos o quintal onde plantamos o cinismo? Achamos que somos o centro do mundo? Que temos sangue azul? Que somos iluminados, dinásticos, inquestionáveis? Que os outros são feitos de trapos? Os outros só servem para satisfazer os nossos egoísmos? Os outros são escadas, atalhos, ocasiões, oportunidades, saldos? Serão empecilhos se tiverem uma opinião diferente? Serão incapazes se não nos derem primazia? Quantos dos livros que já lemos serviram de alguma coisa, o que é que aprendemos com eles? Aprendemos o quê nos livros incontornáveis? O nome das personagens, o título, o autor? Ou conseguimos através deles chegar à essência que nos mudou para melhor? Quantas vezes mergulhamos nós na obscuridade do nosso ser para tentarmos perceber o que somos, de que somos feitos? Quantas vezes aceitamos os nossos fantasmas, as nossas fraquezas, as nossas contradições? Quantas vezes somos sinceros quando à noite pomos a consciência nos nossos colos cansados? Quantas vezes nos olhámos ao espelho e nos chamámos de patéticos? Será que não há um dia em que, finalmente, assumamos a nossa condição de quebrantáveis? Será que não há um dia em que, finalmente, deixemos de julgar as acções dos outros à luz da nossa mesquinhez? Durante dias, anos, andamos armados em espertos a distribuir poses, a conspirar, a gastar rios de palavras. Levamos uma vida a fio a olhar para o umbigo e estupidamente pensamos que estamos a fazer alguma coisa de jeito. Vivemos à superfície. O que dizemos são salpicos, farrapos sem importância nenhuma. Emproados, vamos apenas existindo na espuma dos dias. A memória colectiva não se lembrará de nós. Nada fizemos por isso.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Que segredos
deixa a noite sobre o restolho
quando dele se levanta?

domingo, 4 de julho de 2010

Uma borboleta
de asas mortas
voou.

Foi num poema
que o vento lhe fez.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

reviver o passado em ourique

Ao fim da tarde, enquanto o sol esmorecia, eles irrompiam da madrugada da memória. Eram searas de saudade à espera que a meiga foice dos sorrisos as viessem ceifar e na terra plana dos corações mais não houvesse que uma felicidade absolutamente transparente.

Ao princípio daquela noite havia um alvor de lua emocionada crescendo nos peitos. E todos, uns nómadas, outros sedentários, estavam sedentos de juntar o passado ao presente. Para perceber como chegaram até ali tantos anos depois.

Ao crepúsculo havia uma aurora de abraços e carinhos e rugas bonitas e cabelos brancos que brincavam na noite como meninos.

Havia anos que não se viam. Alguns tinham abalado e levado tudo com eles. Uns levaram o corpo, outros a família, uns tantos a necessidade, quase todos os sonhos. Mas não levaram as raízes, o calor do ninho, a matriz da cal. Outros que só cá tinham estado um, dois anos, haviam partido ébrios de paixão por este lugar onde as planícies vêm abraçar as serras.

A vida é um fado que demora, que se enleia na tristeza dos dias, é uma coisa que se adia, que nos vai afastando da essência da nossa identidade. Mas, por mais que tentemos negar, há uma evidência incontornável e simples: o ser humano precisa essencialmente de ternura, de um sorriso, de compreensão, de pertença.

Voltaram agora ao sítio onde foram felizes. Chegaram dos labirintos da existência, atravessaram abismos, experimentaram caminhos. Diferentes por fora. Mais gordos, mais carecas, mais velhos, mais grisalhos, mais cansados. Mas felizes. Às vezes, o futuro é o passado. As vozes eram muitas e vibrantes porque os corações estavam perto das bocas e os olhos brilhantes eram o dobro das vozes e cada olhar tinha dois corações unidos pelo sorriso.

Foi terna a noite. Não há muitas situações na vida que emocionalmente superem o reencontro de amigos sentados a uma mesa comendo emoções e bebendo das palavras uns dos outros.

No lusco-fusco havia uma claridade absoluta nas almas que vieram voar neste céu como se fossem pássaros que regressam felizes às primaveras das suas vidas.

Sábado, 19 de Junho de 2010. Primeiro Encontro de Antigos Alunos, Professores e Funcionários do Agrupamento Vertical de Ourique.

Nós somos o que fomos.

in Correioalentejo, 25 de Junho de 2010

terça-feira, 29 de junho de 2010

É só para dizer
que
um poema não sabe
do raciocínio das coisas

que
cada sonho se agarra
à vida como pode

que
cada procura
é uma fome na alma

que
uma linha recta
não sabe do delírio de uma curva

que
eu ainda pouco sei
de mim