quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Antes de ser pó

Um cemitério é um livro de páginas de mármore com cruzes na capa. De palavras enterradas em cinzas e ossos. De memórias desfeitas. De esqueletos de silêncio.
Não deviam fazer os muros tão altos e deviam plantar árvores de fruto e não ter árvores que levam as almas para o céu porque há almas que gostavam de ficar na terra e ter portões que não rangessem e era bom que as pedras das sepulturas não fossem tão tristes e tão frias e as flores crescessem da terra e cada pétala fosse da cor dos olhos dos que morreram. E os cemitérios deviam ser iluminados à noite para nós não termos medo das corujas que esvoaçam de nome em nome, de campa em campa, de jazigo em jazigo, como se fossem carteiros batendo à porta da saudade
1880-1964. Vida eterna. Aqui jaz. Paz à sua alma. Dos amados filhos e esposa. A lápide que tinha à sua frente fê-lo pensar que tão grande mistério como saber se há vida para além da morte é o de saber que vida houve antes da morte.
Andando por entre os corredores do cemitério e olhando para as campas, dividia as pessoas que ali estavam enterradas em duas categorias: as que conhecera e as que não conhecera. E isso fazia toda a diferença, pois ali entre sepulturas, havia uns que dentro dele ainda viviam de pé. Lembra-se dos gestos, da forma de andar, do timbre da voz, do rosto, de ter estado com eles aqui e ali, de um aperto de mão, de um abraço, de noites de álcool e conversas de mulheres, de trabalhos conjuntos, de lhes ter batido palmas ou injuriado, de o terem atendido ao balcão, de um jantar de amigos, de uma indiferença, de uma deferência, de uma discussão. São caleidoscópios, recordações, memorandos, fragmentos, recuos no tempo. Com traços de memória mais ou menos vincados, ele lembrava-se deles, ressuscitava-os com o pensamento e dava-lhes uma consistência, um passado, uma vida antes da morte. Enquanto ele fosse vivo, de alguma maneira, eles respiravam em si.
Agora aquele homem naquela fotografia tatuada na pedra, de bigode aprumado, de risco ao meio, não tinha raízes dentro dele. Não havia uma emoção, um princípio, uma ideia, que o ligasse a ele. Não o sabia definir, enunciá-lo, explicá-lo. E no entanto ele ali estava, de olhos abertos e sorriso preparado pelo fotógrafo, como todos os outros que ele conhecia. E pôs-se a pensar o que teria sido a vida daquele homem até a terra o comer. O que fez ele durante oitenta e quatro anos, desde a infância, passando pelo primeiro amor, pelas mulheres que teve, pelos filhos que fez, pelas paredes que levantou, pelos sonhos que ergueu, pelas doenças que o deitaram abaixo? Que homem foi aquela cinza e aqueles ossos? Que carne foi este pó?
Aquele traço entre as duas datas talhadas na pedra parece resumir toda a sua existência a um lapso, a uma inconsistência do tempo, a pó ainda antes de ser pó.
É estranho, mas um cemitério tem mortos que é como se nunca tivessem vivido.

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