segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

ourique tem saudades que sabem a vinho

Antes de almoço, os homens bebiam em copos pequenos, não se demoravam muito tempo e levavam alegria nas bocas. Antes das mulheres migarem as sopas, era aquele o caminho, o desvio de duas ou três ruas, os passos apressados entrando na taberna, uma mão de mecânico, de carpinteiro, de lavrador, batendo com uma moeda de vinte e cinco tostões no balcão, engolindo o vinho de um trago, dizendo até logo que a patroa está à espera.
A venda era um altar onde os homens se iam benzer. O Ti Mira era uma religião, a taberna uma catedral e os homens maduros eram os seus discípulos. Pão e vinho. Fé nos petiscos.
À tarde, depois do trabalho, os homens traziam aquele destino nas pernas e bocados de presunto caseiro embrulhados num guardanapo. Traziam terra nas unhas e sol nos olhos e vinham ali matar a tarde e a sede. Cortar o queijo em fatias fininhas, dividir um pêro por dez, multiplicar metade de um pão, contar partes, afogar mágoas, fritar jaquinzinhos, derrubar medos, comer pardelhas, fazer juras, temperar saladas de mastruços, matutar na sorte, rapar cabeças de borrego assadas, amaldiçoar a vida, abençoar um neto que nasceu, cantar a despique.
A taberna era grande e tinha mesas de madeira e o balcão dava para muitos homens e houve um tempo em que eu tinha medo das peles de cobra pregadas na parede. E cada homem tinha um canivete porque num petisco que meta ossos, um canivete é uma questão de sobrevivência. E cada homem tinha uma voz grossa apoiada no cotovelo, e as vozes todas dos homens todos em uníssono formavam um coro de cigarras fumando cigarros de enrolar.
A venda era um espaço de cultura. Uma cultura viva, com sabor e cheiro, de boina posta, com calos nas mãos, barbas por fazer e botas cardadas, de transmissão oral, de saberes de torrões e luas, de perdizes e geadas, de montados e temperos.
O mundo todo era ali e o horizonte tinha pipas e barris de vinho. Era ali que se explicava a vida em palavras doces ou amargas, alinhadas em rebanhos mansos ou solitárias como lobos ferozes. A maior parte dos homens não lia livros. Mas sabiam ler as linhas do rosto. Interpretar o tom de voz. Concluir nos olhos. Responder nos silêncios. Rematar com ironia.
O Ti Mira aviava rodadas e por cada copo de vinho branco, eu bebia um copo de laranjada Cirel e comia tremoços, alcagoitas e ternura. E por ali ficava, horas a fio, ouvindo os homens a subir o tom de voz, montados nas asas do vinho.
Todos os dias antes de almoço e ao fim da tarde, os homens passavam por ali como o sangue passa obrigatoriamente pelo coração.
Uma parte de Ourique morreu quando aquela porta se fechou.
Para lá da porta, o pó vai enchendo os copos de saudade.
Às rodadas.
Até a memória fazer a conta.

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