sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Labirinto

Quando olhamos para o outro não vemos quase nada. Ou melhor, vemos a superfície, vemos o rosto, os olhos, o andar, as expressões, as atitudes.
E presumimos que sabemos tudo sobre ele e o que vai dentro dele, o que pensa, o que chora, o que ri, o que deseja. Como uma esponja cega vamos absorvendo a imagem que o outro nos dá, tomamo-la por definitiva dia após dia, ano após ano. E dizemos que nem pensar, tal pessoa é minha amiga, punha as mãos no fogo, ele não era capaz disso, conheço-o como as minhas mãos, dava-lhe a minha camisa, íamos os dois até ao fim do mundo se fosse preciso. Ideias de unha com carne. Sangue com sangue. Duas faces da mesma moeda. A tudo isso juntamos os anos de convívio, o historial da relação, as confidências maiores, as conversas grandes como uma noite inteira.
E concluímos qualquer coisa forte. E temos certezas. E não nos enganamos.
O hábito é um animal de homens.
Mas não. Não é assim. Há sempre mais do que aquilo que parece. Há mais para lá da capa, quanto muito entramos no preâmbulo, com um pouco de sorte na introdução, com um golpe de génio temos acesso ao primeiro capítulo. O clímax passa-se dentro do hedonismo do cérebro, na luxúria da carne, no silêncio do grito, na nossa ausência. Uma pessoa é um livro grande de mais para ser lido de enfiada por outra. O futuro vem, às vezes, por causa da ansiedade, muito antes do presente e o passado é lá mais à frente, já depois do condicional. A linguagem da vida interior, cavernosa, lá no sítio onde se fermentam os sentimentos mais excelsos, tem códigos, sintaxe e semântica, inacessíveis ao mais comum dos amigos. A interpretação é complexa, não é verdadeiro/falso, escolha múltipla, composição de vinte linhas. O conhecimento das entranhas do outro requer um mestrado em multiplicidade e uma tese de doutoramento em labirintos. Coisa para duas vidas consagradas a Freud. Só nós nos conhecemos a nós próprios. Ou melhor, apesar da incompetência em assuntos existenciais ainda somos aqueles que melhor nos aproximamos de nós. Por vezes, num assomo de clarividência e de coragem, conseguimos alcançar a génese daquilo que somos e do material de que somos feitos. E umas vezes voltamos felizes e outras vezes não. A descoberta nem sempre é boa e motivadora de orgulho. Fechados a sete chaves e imunes até às bebedeiras mais aventureiras, há sítios onde ninguém consegue chegar. Por mais que se tente e por mais que nós, solícitos e solidários, queiramos levar amigos lá e eles também queiram ir, há um labirinto ali na verdadeira entrada de nós que faz perder os outros. São palcos de mil peças em simultâneo, personagens bizarras lambendo feridas, pássaros com raízes nos dorsos em vez de asas, caminhos cruzados, decisões abraçadas aos seus contrários, vazios que andam à roda, à roda, à roda.
O pior labirinto é aquele que é construído por nós. Fazemos dele um ninho de perdição. Palha a palha, pena a pena. Os dédalos exigem uma enorme capacidade de raciocínio para se sair deles. Quando tentamos, a emoção atravessa-se no caminho, despista-nos, ilude-nos e condena-nos a lá ficar para sempre.
O que nos conforta é que até os labirintos têm sítios onde nós gostamos de estar. Sozinhos, é claro.

2 comentários:

  1. olá vitor, é bom reencontrar-te nem que seja por aqui. vai tricotando o tempo, que eu vou lendo.lembrei-me daquelas colectâneas de textos em fotocópias da fac....
    um abraço- pedro jubilot

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